Semana Santa em Sevilha


08/04/2009

Benoît Bemelmans

A capital da Andaluzia, na Espanha, é famosa por suas celebrações na Semana Santa. Milhares de penitentes desfilam pelas ruas, portando em procissão pesados andores com imagens que lembram os diversos momentos da Paixão de Nosso Senhor. Nesse artigo, algo do sabor do evento.

O doce perfume das laranjeiras em flor, que paira em toda a cidade, surpreende quem pela primeira vez visita Sevilha. Em certas esquinas, durante a Semana Santa, esse perfume se mistura com nuvens de incenso que se elevam dos cortejos, e também com o cheiro da cera quente derramada pelos milhares de velas dos andores, carregados por penitentes que desfilam. Apesar de um ditado afirmar que em Sevilha o ano inteiro é como se fosse Semana Santa, essa sensação olfativa é única e acompanha quem caminha pelas ruas ao longo desses dias.


“Os penitentes”, quadro de Joaquin Sorolla (1863-1923)

Na Semana Santa não somente se respira, mas se toca, se contempla, sente-se vibração, reza-se, chora-se, canta-se. A poesia está presente em todos os ambientes: nos floridos pátios internos das casas, muitas vezes visíveis da rua através de lindas grades de ferro forjado; nas capelinhas onde estão expostas as insígnias das confrarias; nos andores processionais ricamente adornados, com suas imagens reproduzindo os diversos momentos da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Peculiar forma de sacralização da vida temporal

 

Foi para praticar um ato público de fé, em reação aos erros do protestantismo, que a partir do século XVI as confrarias saíram às ruas com seus pesados andores, levando em procissão suas imagens para proclamar publicamente sua fé. Assim, representavam aos olhos de todos uma lição palpável de como se deve cultuar a Paixão de Nosso Senhor e as dores de Nossa Senhora, co-redentora. É de se considerar que tais manifestações são por vezes mais eloqüentes e eficazes do que mil sermões.

 

Por isso, o penitente que desfila durante longas horas carregando uma enorme vela acesa, revestido de uma túnica e do capuz pontiagudo que o torna anônimo, recebe o nome de “nazareno”: ele participa por sua penitência da Paixão de nosso Redentor, procurando tornar-se assim um outro Cristo.


No Domingo de Ramos, a primeira confraria que sai em procissão leva um andor representando a entrada triunfal de Nosso Senhor em Jerusalém.

As confrarias — são mais de 50 que desfilam só na Semana Santa sevilhana — organizam as procissões e cuidam da conservação de suas imagens, verdadeiras obras de arte barroca. Ademais, promovem através desses atos de piedade e de cultura católica um autêntico acontecimento na sociedade moderna, através do sustento e desenvolvimento da religiosidade popular e também mediante suas obras assistenciais e caritativas de grande porte. A parte cultural inclui ainda a conservação de seus arquivos e de sua história, a organização de conferências e reuniões periódicas, bem como semanas de estudo sobre “fé e cultura”. Todas essas atividades têm no centro o gosto pelo belo e constituem uma forma particular de sacralização da vida temporal.

 

A cidade sai em grandiosas procissões


Ao lado, detalhe de um andor em prata lavrada, Nossa Senhora com São João

Caminhando pelas ruas da cidade ainda nos primeiros momentos da tarde, o visitante cruza com os penitentes já revestidos da túnica e com o capuz posto, que se dirigem para a igreja de onde deve sair a procissão de sua confraria. Como são cerca de sete ou oito confrarias, com milhares de penitentes a cada dia, o movimento é contínuo. Causa rara impressão estar esperando a abertura do semáforo para atravessar uma rua, tendo ao lado dois ou três desses personagens que parecem saídos de uma outra época. Alguns vestidos inteiramente de negro, com cilício de corda por cima da túnica; outros de branco, ou com o capuz e o escapulário de distintas cores. Bom número deles caminham descalços, outros apenas com uma simples sandália. Vão caminhar assim durante horas.

Diante da igreja de onde sairá o cortejo, com as fanfarras que devem acompanhá-lo, o público se aglomera. Na hora marcada, a porta se abre de par em par e aparece primeiro a cruz de guia, abrindo alas para um impressionante cortejo de austeridade e de fé. Atrás, entre os primeiros grupos de penitentes fazendo fila dupla, vem o senatus –– um emblema com as iniciais “SPQR”, símbolo da Roma antiga –– para lembrar que foi debaixo do poder do império romano que morreu Jesus, e que naqueles dias Sevilha (então chamada Hispalis), já era uma cidade importante e fortificada, cujas muralhas tinham sido levantadas séculos antes por Júlio César.

 

Várias centenas de penitentes continuam saindo da igreja, cada grupo com o seu zelador e com diversas insígnias, gonfalões e bandeiras — a da Santa Sé, bem como o estandarte da confraria — com frases inscritas como esta: “In cruce est vita, salus et ressurectio nostra” (Na Cruz está a nossa vida, salvação e ressurreição). O livro que contém as regras da confraria, ricamente decorado com fechos de prata, é levado solenemente por uma guarda de honra.

 

Aspecto de um dos andores

Segue-se o pesado andor de Cristo, de madeira preciosa esculpida ou recoberto de ouro, com candelabros barrocos e flores, sobre o qual está representado algum dos momentos da Paixão: Nosso Senhor carregando a Cruz; o beijo de Judas; o Divino Corpo sendo levado ao túmulo; ou várias estações da Via Crucis.

 

O andor é carregado ao ombro por 40 portadores denominados costaleros, escondidos debaixo do andor coberto até o chão com pesados veludos, ocultos aos olhos dos observadores. Cada um carrega um peso de 50 ou 60 quilos sobre os ombros. Antigamente os carregadores do porto faziam esse trabalho, que era remunerado. Mas desde o fim dos anos setenta, após a desaparição da profissão dos estivadores substituídos por máquinas, são membros voluntários da confraria que desempenham essa função. Um pano dobrado cobre-lhes a cabeça, servindo para aliviar o peso sobre as vértebras do pescoço, onde se apóia a pesada trave do andor.


Adiante, o capataz vestido de negro, com ordens breves e rápidas, dirige o pesado andor enquanto os portadores caminham às cegas. Uma segunda equipe aguarda, com o pano já dobrado sobre a cabeça, pronta para substituir regularmente os companheiros.

 

A fanfarra toca marchas fúnebres, os tambores com fortes golpes fazem vibrar os peitos, os clarins lançam lamentações que rasgam os ares. O andor avança lentamente, acima das cabeças do público compacto, gira pouco a pouco no sentido da rua, e depois avança com passo mais rápido, no meio do estrugir dos aplausos comovidos.

 

Em honra da Virgem co-redentora da humanidade

 


Os portadores, com pano enrolado para proteger as vértebras, devido ao peso do andor

Sai agora da igreja outra bandeira muito especial –– o Sinpecado, que leva a inscrição “Sine labe concepta”, em honra da Virgem Imaculada –– lembrando a verdade de que Nossa Senhora foi concebida sem pecado original e o voto de defendê-la, feito pelas confrarias séculos antes da proclamação do dogma pelo Papa Pio IX. Essa pequena bandeira anuncia a saída do Pálio da Virgem, que já aparece no umbral da porta.


O andor de Nossa Senhora, de prata trabalhada, é coberto por um pálio. A devoção filial para com a Virgem co-redentora excogitou essa maravilha que é o andor com um pálio, de surpreendente harmonia, além da grande beleza das imagens de Nossa Senhora, que sempre acompanham nas procissões o andor de Jesus Cristo. É ao mesmo tempo um altar, um trono, uma poesia de filigrana, de luzes e de flores, e um “berço para embalar sua dor”, pois com a beleza do pálio os sevilhanos querem consolar as dores de Maria Santíssima e acompanhá-la em todos os instantes da Paixão. Tocando a cauda de seu manto de Rainha, pequeno grupo de anônimos devotos que fizeram alguma promessa seguem durante horas, sem jamais se afastar do andor.

 


Senhora com a traditional peineta e mantilha, acompanhada por seu marido, visita uma igreja de onde deve sair uma das procissões

Os balcões das casas estão enfeitados com ricos tecidos, e todos os habitantes com suas melhores vestes. As crianças, ajudadas por alguns parentes, lançam uma chuva de pétalas de flores sobre o andor e depois sobre o pálio.

 

De repente, um canto solitário se faz ouvir. Modulado até quase perder o fôlego, é ao mesmo tempo oração e lamentação: a “saeta”, que sai de um peito como uma flecha lançada em direção à Virgem. É como o fruto de uma grande angústia que aperta o coração e sobe à garganta, até romper em vivo e palpitante soluço. Por isso, um verso diz: “Nasceu a primeira saeta ao pé da Cruz / E se envolveu num suspiro da Mãe de Jesus”.

 

 

 

 

 

Não leia esta parte...


O “Cristo dos ciganos” — “Nuestro Padre Jesus de la Salud”

… se somente os relatos dourados o atraem, se a realidade feia e crua o espanta, se o conhecimento da miséria humana o perturba –– então, por favor, não leia as linhas que seguem.

Na madrugada da Quinta para a Sexta-feira Santa, ninguém dorme em Sevilha. As ruas estão de tal maneira cheias, que às vezes nem se consegue passar. Acompanhando Nosso Senhor que está preso, e cuja Paixão já começou, as confrarias saem em procissões com suas imagens. Só nessa noite são mais de 10.000 penitentes que desfilam. O mesmo número de participantes saiu à tarde da Quinta-feira, e igual número de devotos sairá na Sexta-feira. O público que assiste à cena conta-se por centenas de milhares.

Nasce então uma pergunta: será que tudo que acontece nessas horas é edificante e piedoso? Será possível que numa grande cidade moderna, com toda sua juventude nas ruas, as pessoas somente pensam em devoção e oração? Não. Não é possível. E certamente algumas cenas que se observam poderão até chegar ao grotesco. Mas para mim, foi justamente quando isso ocorreu que o aspecto sublime tocou-me.

Prensado contra o portão de uma casa, no meio da multidão, eu tinha visto passar a poucos metros, no silêncio reverente de todos, o Cristo del Gran Poder, com sua túnica oscilando, como se fosse ao ritmo de seus passos doloridos e incertos. Na ponte sobre o rio Guadalquivir, com o frio cortante subindo das águas e os longos capuzes pontiagudos recortando-se sobre o céu de Sevilha iluminado pela lua cheia, eu tinha estado ao lado do andor do Senhor das Três Quedas, quando o pálio da Virgem da Esperança de Triana ainda estava longe.

Mas já ali eu tinha cruzado com um grupo em que visivelmente vários de seus elementos estavam bêbados. Depois, na entrada da ponte, passei ao lado de três adolescentes que, aproveitando de um sentimento de liberdade propiciado pela noite, com olhar esquivo e risadinhas tontas nos lábios, estavam consumindo drogas. Mais tarde ainda, debaixo dos arcos, ao lado da praça da Encarnação, os bares abertos estavam cheios de pessoas cantando músicas bem pouco sacras, além de casais que se abraçavam. E um jovem estava prostrado no chão, devido à ingestão de bebida alcoólica.

Devo dizer que, à dor que eu sentia nas pernas, ao cansaço depois de tantas horas caminhando e esperando de pé, juntou-se a dúvida que me assaltou: será mesmo que vale a pena esse costume das procissões? Não seria melhor que todas essas pessoas estivessem dormindo em suas casas? O preço a pagar para que uns tantos façam piedosos exercícios não será alto demais, já que outros só pensam em divertir-se e não sabem fazê-lo sem pecar? E o que fazia eu nessa rua, pouco antes das cinco da madrugada?

Foi nessa hora que, dobrando lentamente a esquina, apareceu o andor com o Cristo dos Ciganos. Tudo mudou! O silêncio se fez completo. Todos o olharam. Até o bêbado pôs-se de pé!

Os tambores e clarins explodiram em uma marcha fúnebre, que parecia querer rachar os peitos e fazia vibrar o ar.

Com seu peculiar andar, hesitante e titubeando debaixo do peso do madeiro, Cristo ia avançando pouco a pouco, bem alto acima da multidão. Lá vinha Jesus com sua imensa Cruz, com sua imensa dor, com seu imenso amor.

Era Deus feito homem que passava no meio dos pobres pecadores que somos todos, aglomerados na rua, hoje como outrora, e Ele estava sofrendo sua Paixão para nos salvar. Já ia se afastando na penumbra, quando irrompeu um aplauso geral. Foi quando não contive as lágrimas, chorei aproveitando-me da noite. Depois, não vi mais nada.

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