Em defesa da Ação Católica Antecedentes – ambientes – episódios


25/06/2008

Nelson R. Fragelli

Nos círculos da Ação Católica dos anos 30, “novos ares” –– as doutrinas modernistas –– foram inoculados. A denúncia foi feita logo depois por Plinio Corrêa de Oliveira

Numa noite de outono, em 1942, Plinio Corrêa de Oliveira trabalhava em seu escritório de advogado, num edifício do centro velho de São Paulo. No mesmo andar situava-se a sede da Ação Católica, da qual ele era o presidente da Junta Arquidiocesana, e àquela hora rumorejavam ainda ali os jovens, quando entra no escritório um sacerdote de pequena estatura, semblante enérgico e afirmativo, iluminado por olhar fixado além. Teria uns 60 anos, trazia uma maleta e ostentava o inconfundível ar dos jesuítas de outrora.

Apresentações mútuas, ele toma assento e inicia-se a conversa. Em sua expressão cordial, patenteia-se discreta argúcia. Dispensava explicações extensas, apreendia os matizes, circulava agilmente por temas variados. Discernindo, observando com fineza, num leve baixar de pálpebras denotava apreensão do subentendido. Capaz de uma penetração própria a um diretor espiritual, tendo sutilezas diplomáticas. Sobre sua intenção, pouco revelava. De onde viria esta personalidade de porte? Viria por conta própria? Seria enviado de alguém?

Com a arte de levar o interlocutor a falar, sem denotar curiosidade, ele desejava esclarecimentos sobre a Ação Católica, sobre a orientação que vinha tomando, a ortodoxia das declarações de alguns de seus próceres, o papel de determinados dirigentes, entrechoques doutrinários, erros nela infiltrados. Sobre estes ele estava a par, apreciava os detalhes, parecia preocupado, concordava com sua gravidade. Conhecia a oposição veemente de Dr. Plinio àqueles erros. Sondava sobre atitudes futuras: “O Senhor nunca procurou informar seus superiores? Far-me-ia o Senhor um relatório? Resido no Rio de Janeiro, e talvez pudesse levá-lo a boas mãos...”

Suave como o fumo que se eleva ao apagar de uma vela, ele se levantou estendendo a mão, assim significando desejar não ser acompanhado até o elevador. A cautela emanava de sua personalidade: seria mais prudente que jovens da Ação Católica, circulando naquele andar, não o notassem. Sorriu amavelmente, saiu, tomou o elevador, desvaneceu-se. Poucos dias mais tarde, estando ainda em São Paulo, foi-lhe entregue o relatório solicitado.

* * *

No círculo, Plinio Corrêa de Oliveira, à época, presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica de São Paulo

No dia seguinte, um alto prelado da Cúria Metropolitana dizia a Dr. Plinio ser aquele um jesuíta categorizado. Era confessor do Sr. Núncio Apostólico.

Portanto, algo se movia na Nunciatura. A controversa situação da Ação Católica chegava assim à Secretaria de Estado de Sua Santidade.

Passam-se alguns dias, e no mesmo escritório soa o telefone. Sem dar nome, uma voz abafada, agora já conhecida, chamava do Rio de Janeiro: “Aquele Senhor gostaria de conversar. Estaria nas intenções de Dr. Plinio vir ao Rio?”.

“Aquele Senhor” era o Núncio Apostólico Dom Bento Aloisi Masella, Arcebispo de Cesaréia, representante no Brasil de Sua Santidade o Papa Pio XII.

 

Nunciatura Apostólica

 

Dom Bento Aloisi Masella, Núncio Apostólico no Brasil
Na penumbra acolhedora do palácio da Nunciatura, tudo ressumava elevação e recato. Salões dourados, mosaicos magníficos, pesados veludos, a solenidade emanava de todo ornato. O Núncio unia jovialidade e suma reserva — aristocráticas virtudes, realçadas pela escola de diplomacia pontifícia. Em meio à distinção de posadas atitudes, ouve o Senhor Núncio, impassível, a matéria do relatório. Nenhuma observação, nem mesmo sobre os pontos mais candentes: a circulação nos ambientes da Ação Católica de erros patentes; de opiniões já condenadas, mas agora em voga; inovações desvairadas. Mas o que os lábios não diziam, o olhar afirmava. E aqueles lábios finalmente se moveram. Prometeram um prefácio a um eventual livro que fosse a ampliação daquele relatório.

Em São Paulo, Dr. Plinio pôs-se a escrever o livro Em defesa da Ação Católica. O Núncio o leu, meditou sobre seu conteúdo. E cumpriu sua palavra, mesmo sabendo que seu prefácio o lançaria na tormenta. O que continha o livro, capaz de inclinar o futuro cardeal a graves reflexões? O que havia na Ação Católica, para aquele tão categorizado jesuíta mover-se com tanta cautela em ambientes eclesiásticos?

 

O lance


Em junho de 1943 — exatamente há 65 anos — Plinio Corrêa de Oliveira lança seu livro-bomba. Em defesa da Ação Católica enseja portentosa luta, já várias vezes relatada por esta revista.(*) O Episcopado se divide. Vinte bispos enviam cartas de apoio ao autor, outros silenciam, minoria furibunda ataca a obra. Mas — é importante notar — nenhum adversário o refuta. O livro obtém sucesso, sobretudo entre os que dele não gostaram. Lendo-o, passaram a ser vigilantes, porque Em defesa da Ação Católica, claro e irrefutável, instilou nas almas a desconfiança em relação às novas doutrinas. O ímpeto revolucionário arrefeceu. Nos anos seguintes, os “inovadores” da Ação Católica passariam à região sombria onde jaz inglória a infidelidade fracassada.


 


Época de harmonia entre os católicos

“Não se faz hoje idéia da concórdia existente entre nós, católicos militantes, até meados dos anos trinta”, costumava dizer Plinio Corrêa de Oliveira, saudoso daqueles tempos de harmonia. “Não havia divisões, vivíamos em completa paz religiosa. Não passava pela cabeça que um congregado mariano, ou um membro das inúmeras associações eclesiásticas, tivesse má intenção ou não trabalhasse para sua salvação e a do próximo. Cada um tinha confiança no outro. Entre eclesiásticos e os fiéis havia inteira consonância: constituíamos um mundo sem murmurações nem críticas. Numa palavra: não havia inimigos internos”.

Primórdios da infiltração

Plinio Corrêa de Oliveira era deputado, na Constituinte de 1934, quando manteve um de seus primeiros contatos com as novas idéias provenientes de Europa. Era uma tentativa de infiltração nos meios católicos brasileiros. Uma notabilidade francesa, professor da Sorbonne, veio ao Brasil a serviço de seu movimento, as Equipes Sociais. Grandes órgãos da imprensa anunciaram sua chegada. Pediu um encontro com o jovem deputado: “Aqui estou para fundar meu movimento, preciso de seu apoio. Ele é bem visto por arcebispos e cardeais europeus, conto com jovens católicos — até de comunhão diária —, embora o movimento nada tenha a ver com Religião”. Esta insólita declaração levou Dr. Plinio a perguntar, insistentemente, a respeito da adesão das tais Equipes ao Magistério Pontifício. O francês hesitou em responder, mas finalmente confessou que seu movimento tinha não-católicos na direção, a fim de evitar que ficasse inteiramente católico. As Equipes deveriam abrigar pessoas de religiões e tendências ideológicas diversas. Era um primeiro intuito de filiar católicos a um movimento “aberto” ao mundo, com tendências de um ecumenismo relativista.

Diante do absurdo da proposta, Dr. Plinio recusou-lhe toda colaboração. As Equipes não foram fundadas em São Paulo, por oposição do Sr. Arcebispo, mas tornaram-se operantes no Rio de Janeiro, onde jesuítas as apoiaram. Seus membros foram formados segundo as novas doutrinas impregnadas de socialismo, e 15 a 20 anos mais tarde constituíram bases da esquerda católica. Começava a rachar a unidade dos meios católicos brasileiros. A concórdia iria em breve desaparecer (vide quadro ao lado). A Ação Católica foi vítima de infiltração das idéias das Equipes.

Liturgicismo

Poucos anos antes de tal professor aparecer, estivera em São Paulo uma professora vinda da Bélgica. Ganhou logo prestígio entre todos, embora sua apresentação destoasse do nosso modo de ser: enorme, vestida sempre de preto, cabelos lisos presos por um coque, ar misterioso, olhos pseudo-cândidos, sempre mastigando. Fazia conferências para moças católicas da boa sociedade. A elas abria as portas da Escola de Serviço Social de Louvain (Bélgica), onde permaneciam por dois ou três anos. Era um verdadeiro noviciado. Todas retornavam ao Brasil com novas idéias a respeito da religião e da sociedade, semelhantes às das Equipes Sociais. Em matéria de religião, eram liturgicistas, e socialistas em matéria temporal. Originou-se então o absurdo, mais tarde generalizado: a boa sociedade, enquanto católica, punha-se a serviço do socialismo.

O liturgicismo reformava a liturgia de modo a ajustá-la inteiramente ao mundo moderno, propunha uma nova interpretação da doutrina da Igreja e de seu modo de ser. Contestava o ensinamento da Igreja sobre o papel da autoridade; equiparava o sacerdote ao leigo; menosprezava as formas de piedade tradicionais, especialmente a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, a Nossa Senhora, à recitação do Rosário; desdenhava a espiritualidade de Santo Inácio, o culto das imagens, etc. Em assuntos de moral, era liberal: anuía à freqüência de ambientes como clubes, piscinas, bailes, onde a gravidade do pecado era minimizada e o modo de ser das pessoas opunha-se à moral católica. Isto significava estender as mãos ao mundo neopagão. As reformas propostas para a sociedade espiritual eram análogas às reformas desejadas pelo socialismo para a sociedade temporal.

Isolamento – fidelidade

Contando com apoio ora de bispos, ora de personalidades eclesiásticas de renome, esses dois movimentos foram ganhando adeptos. E Plinio Corrêa de Oliveira foi sendo sempre mais isolado: velhos amigos e batalhadores do movimento católico esfriavam, abandonavam a luta, desapareciam. De cá e de lá ouviam-se murmúrios contra o método do apostolado de conquista desenvolvido nas gloriosas Congregações Marianas (vide quadro ao lado). Se fiéis às diretrizes apostólicas de outrora, sacerdotes e leigos dos mais brilhantes passavam à obscuridade, deixavam de ser convidados a pregar, eram empurrados de lado, perdiam seus cargos. Mas se passassem — conforme escreveu Dr. Plinio no livro em foco — a “ocultar que a Igreja é uma escola de sofrimentos e sacrifícios” (p. 205), se “passassem a evitar sistematicamente qualquer coisa que, legitimamente ou não, pudesse causar a menor diversidade de opinião, [...] calando cautelosamente as divergências com o mundo e com os não católicos, [...] e assim canonizando a prudência carnal” (p. 203), eram guindados aos galarins. Era uma ação metódica, com apoio em setores da mais alta Hierarquia. A fidelidade, tida por retrógrada, precisava da têmpera dos santos para resistir a estes miasmas do progressismo, no qual se metamorfoseara o liturgicismo.

Sacerdotes e leigos de valor enfrentaram a vaga progressista. Seu combate se inscreve nas páginas de glória da história eclesiástica brasileira. Permaneceu fiel aquele discreto jesuíta. Por meio de sua influência em Roma, prestava preciosos serviços. Conseguia conservar em seus postos sacerdotes e leigos que resistiam. Colaborava para que excelentes relações na Europa e no Vaticano fossem conservadas. Agiu diligentemente, segundo seu discreto e eficaz estilo, até que desvaneceu (por obediência?) do teatro de guerra onde combatia o autor de Em defesa da Ação Católica.

Erros desfiguraram a Ação Católica

Plinio Corrêa de Oliveira, líder das pujantes Congregações Marianas, era também, nos anos trinta, o presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica de São Paulo. O “Legionário”, órgão oficioso da Arquidiocese de São Paulo, atingia, sob sua direção, o papel de principal jornal católico do Brasil. Pio XI fundara a Ação Católica, conferindo-lhe a função máxima do apostolado leigo, isto é, a colaboração com o apostolado da Sagrada Hierarquia. Imensa era sua influência em todo o País. E imensa ela foi até que erros a penetraram, gerando dissensões, dividindo-a, desviando-a, roubando-lhe o papel histórico.

Distanciamento da esquerda

Núcleos da Ação Católica transformaram-se em viveiros nos quais, primeiramente o nazi-fascismo, depois o comunismo, retirariam elementos para seus comandos. Longa seria a enumeração dos erros que então assolaram os meios católicos brasileiros, prenunciando o transbordamento dos anos 60 e 70, hoje conhecidos e de algum modo agravados. Todas essas doutrinas faziam um só conjunto e prepararam a infiltração marxista-leninista naqueles meios: a Teologia da libertação, a adesão à Reforma Agrária socialista e confiscatória, bem como o tribalismo indígena e um ecumenismo capitulador. “Padres de passeata”, “freiras de mini-saia”, dominicanos secundando terroristas, franciscanos marchando ao lado de invasores de terras, clérigos de esquerda, por traz da guerrilha nascente. Em nossas igrejas fala-se pouco de Deus, e quase somente de reivindicações sociais. Em conseqüência, grande parte do povo é solicitada pelas seitas.

Triunfaram o professor da Sorbonne e a professora belga? Ilusão. Plinio Corrêa de Oliveira prosseguiu a obra do Em defesa por mais de 50 anos após seu lançamento, reforçando no público o sentimento de desconfiança e, portanto, de distanciamento da esquerda católica. Esta abandonou o verdadeiro Deus, perdeu sua força de expansão. Fascinada por Marx, voltou as costas à eternidade. Radicalizou-se, e há décadas é vista como fautora de badernas.

“Lembranças a Dr. Plinio”

Pelos idos de 1968, nas matas do Estado do Rio, às primeiras horas da manhã, um jovem militar em manobras procurou receber a santa comunhão, antes de assumir sua função no comando do esquadrão. Por perto do campo de tiro havia uma capela, anexa a uma casa de repouso de sacerdotes idosos, onde a Missa era celebrada muito cedo. De um jeep estrepitoso, em roupa de combate, salta o oficial dirigindo-se à mesa de comunhão. No recolhimento da ação de graças, sente no ombro um suave toque de mão alva e descarnada, de um sacerdote. Trêmula, diáfana, parecia afeita apenas a livros e dossiês. “Lembranças a Dr. Plinio”, disse, com leve baixar de pálpebras. Era o nosso jesuíta. Nele, só o olhar não envelhecera. Como reconhecera, sob uniforme de combate, um homem do grupo de Plinio Corrêa de Oliveira? Percepções de arguto diplomata... Ele conservara de Dr. Plinio uma imagem indelével, ali reavivada. Indeléveis são também as lembranças que mandou. E se aqui seu nome não é revelado, é por reverência a quem tanto amou a discrição.

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Notas:

(*) Do mesmo autor, vide matéria publicada na edição de Catolicismo de junho/2003: Em Defesa da Ação Católica, obra providencial.

Veja:
http://www.catolicismo.com.br/

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