A rainha de sonhos, martirizada pelo ódio revolucionáro, comove Paris


14/08/2008

Luis Dufaur

Uma multidão acorreu à exposição sobre Maria Antonieta, realizada no Grand Palais de Paris. Envolvendo mais de 300 obras de arte, foi a primeira do gên ero desde a injusta execução da soberana em 1793.


Paris homenageia a rainha guilhotinada

Na avenida Winston Churchill, o esplendor das vestes, a suavidade do sorriso, a majestade do porte de Maria Antonieta iluminam os imensos cartazes que indicam a entrada. Trata-se de uma exposição — realizada entre 15 de março e 30 de junho — sobre a rainha martirizada pela Revolução Francesa. Eu era um dos milhares de visitantes. A avenida conduz dos Champs Elysées até a ponte de Alexandre III, que leva para a grandiosa perspectiva dos Invalides.

Nesse local, havia uma manifestação. O presidente Sarkozy presidia uma solenidade patriótica: a homenagem ao último combatente francês na I Guerra Mundial, que falecera. Intérminas barreiras de isolamento fechavam a imensidade dos espaços que antecedem os Invalides, visando conter uma multidão que se esperava para assistir às festividades republicanas. A qual, aliás, não apareceu. Nos gramados, a única cena viva era um pai brincando de bola com seus filhos. Na ausência geral de pessoas, dava até para ouvir o que diziam: eram turistas americanos.

No Grand Palais, ao contrário, a figura da última rainha francesa do Ancien Régime, Maria Antonieta, atraía multidões com a força de um mito que venceu o tempo e as revoluções.

A exposição ocorreu a poucas centenas de metros da Place de la Concorde, onde o Terror revolucionário guilhotinou a rainha de fábula. Esse crime, marcado pelas trevas e pelo ódio igualitário, obteve ali singular revide: a memória de Maria Antonieta ressurge, envolvida numa aura de conto de fadas, de tragédia e martírio.

Superior doçura e sacralidade na infância

A entrada do Grand Palais é esplêndida. Há vários mecanismos de segurança para o ingresso. Modernos, portanto banais. Passa-se com a rotina de quem entra no metrô. A montagem da exposição, porém, tem algo de deliberadamente teatral, o que diminui o vazio de alma entranhado em tantos museus.

Dentro, eis a surpresa! Logo na primeira sala, um óleo de Johan Georg Weikert nos apresenta uma criança de nove anos de idade, franzina, delicada, tesa e cônscia de sua alta condição, dançando um balé com seus irmãozinhos para honrar o casamento do primogênito, seu irmão maior, o futuro imperador José II [foto ao lado]. Pela seriedade, porte e sobranceria, dir-se-ia uma moça já habituada à corte.

O luxo rigoroso das roupas nada tira do seu charme infantil. Uma luz imponderável paira sobre ela e seus irmãos, sinal de uma vocação providencial. Naquela imperial festa infantil, reforçava-se um relacionamento decisivo para o equilíbrio e a paz na Europa.


No mesmo salão, mais uma surpresa: um suntuoso ex-voto em prata e latão dourado, oferecido pelos pais de Maria Antonieta ? o imperador Francisco I e a imperatriz Maria Teresa ? à padroeira da Áustria, Nossa Senhora de Mariazell. A rica peça representa, em medalhões, os imperiais genitores e os seus 16 filhos. O medalhão de Maria Antonieta está junto com o das irmãs. O esplendor e riqueza do ex-voto, oferecido à Santíssima Virgem por monarcas católicos, testemunha a força do espírito famíliar e a coesão da augusta família [foto].



Princesinha que empolgou os franceses

Mais adiante, em mais um quadro, outra surpresa. Dir-se-ia uma mulher da mais alta condição, uma rainha na plenitude do seu poder. Apenas o frescor e a candura da pele revelam o enganoso da impressão inicial de que se está diante de uma soberana em todo seu esplendor.

Pura e requintada, superior e delicada, atraente e marcando as distâncias, sorridente com recato, familiar e majestosa, apresenta-se Maria Antonieta no quadro pintado para Luís XV, rei da França, durante as tratativas do casamento da Arquiduquesa com o filho primogênito do Delfim da França, o futuro Luís XVI [foto ao lado]. Na época, contando apenas 14 anos, ela deixou sua amada Áustria natal e sua augusta família para cumprir o duro dever de princesa imperial: casar com aquele que o bem de sua pátria e dinastia pedia. No caso, o Duque de Berry, que depois seria o rei da nação cristianíssima, Luís XVI.

Gravuras e pinturas retratam a alegria da França seduzida pelo charme da princesinha austríaca. Um casamento da família real engajava todas as famílias do reino, uma solenidade real era uma festa nacional e familiar de cada lar francês.

Mais adiante, um quadro contendo o registro do régio casamento, redigido pelo pároco de Versalhes e seguido das assinaturas do rei Luís XV, dos jovens cônjuges e dos padrinhos e testemunhas. Tudo transpira nobre regozijo, doces presságios para a família e a nação, se é que numa monarquia se pode distinguir o destino de uma do destino da outra.

Desfilamos então diante de uma maravilhosa sucessão de móveis e objetos do palácio de Versalhes usados por Maria Antonieta, culminando com o comovedor quadro em que a rainha-mártir apresenta a seu esposo o primeiro filho, o sucessor tão aguardado pela corte e o povo. A cena é esplendorosa, pela pompa das régias vestes do casal e das testemunhas. Mas impressiona ainda pela doçura da cena familiar no centro da composição artística [foto ao lado].



Jovem rainha admirada por toda a França

A princesinha cedeu o lugar à jovem rainha. No rigor protocolar da corte, no exercício das extenuantes obrigações e exigências da esposa de um monarca, os quadros nos apresentam a delicadeza, a boa disposição, a finura, o senso familiar e a sacralidade da velha Áustria, em feliz consórcio com o requinte e a douceur de vivre do Ancien Régime francês.

Estão ali os móveis que ela tanto apreciou, ou para cuja confecção ela inspirou os ebanistas. Por exemplo, um feérico conjunto de móveis de nácar, prata e latão dourado, que parecem mais feitos para o Céu Empíreo do que para este vale de lágrimas. Por certo, eles sugerem a idéia da vida celestial [foto à esquerda].

Os salões vão se sucedendo. Nos primeiros, da juventude e adolescência, predomina o azul, e a música é vienense. A seguir, as salas tornam-se mais luminosas e a música evoca a corte francesa.

Leviandade quando crescia a tormenta

Mais algumas salas, e a decoração muda, tornando-se dominada por cores frescas e desenhos de folhas e flores, e o fundo musical é o canto de passarinhos. As peças vêm do Petit Trianon e do Hameau de Versalhes. Predominam cores muito claras e desenhos muito suaves, segundo o gosto da rainha. Ela buscou um derivativo às exigências da corte, construindo uma fazendinha de conto infantil, o Hameau, onde se vestia de camponesa e cuidava de seus animais domésticos.

A idéia afinava com a moda de culto da natureza, segundo a versão idílica forjada pelo revolucionário e pseudo-filósofo Jean-Jacques Rousseau. Porém esse culto tinha profundidades más, que talvez a rainha nunca imaginou. Minava a fundo as mentes, preparava a explosão do crime e da revolução que assassinou o soberano e a própria rainha. O que para Maria Antonieta foi pior, submeteu seus filhos a torturas morais indizíveis, em especial o bem-amado delfim, morto em circunstâncias sinistras.

Por fim, um grupo de esplêndidos bustos em mármore nos apresenta a rainha na plenitude de sua irradiação pessoal. Uma espécie de fogo de artifício expondo qualidades naturais, saúde e superioridade inata, régia, que inclinava as pessoas a sentimentos de enlevo e serviço.

A alvura dos mármores e o aristocratismo supremo de Maria Antonieta, neles expressos, nos apresentam a rainha como um cisne do gênero humano [foto ao lado].

A tragédia e o martírio de uma rainha de sonhos

No fim da brilhante mostra sobre Maria Antonieta, desci por uma escada ladeada por paredes cobertas de gravuras da soberana, lembranças como as de um ser falecido, muito querido. A descida é interrompida por um escuro espelho crivado de balas. Dir-se-ia que um crime horroroso acabava de ser cometido ali [foto à esquerda]. É a fase final da vida da rainha, depois de 14 de julho de 1789 — o início da Revolução Francesa.

Numa sala, com móveis ainda esplêndidos do período pré-revolucionário, apreciamos um dos famosos quadros de Vigée Lebrun em que Maria Antonieta, com uma veste de veludo cor de cereja, segura seus filhos. No colo, o Delfim Luís XVII, ainda bebê. A um lado, a primogênita Maria Teresa de Bourbon, a Madame Royale. Do outro lado, meio afastado, num berço recoberto de panos pretos, o Grande Delfim, o filho primogênito que a doença levou.

Ela está amadurecida. O olhar sugere a visão da tempestade representada pela Revolução Francesa, que ela percebia com maior clareza que seu amolecido e otimista consorte, Luís XVI. A preocupação marca-lhe o rosto. Protege seus filhos, enquanto a tempestade se avoluma.

Atravessando o túnel escuro da Revolução

Concluindo o percurso, abre-se um enorme túnel escuro que se afunila no fim [foto ao lado]. Em pequenas vitrines iluminadas, objetos miúdos usados pela rainha nas diversas prisões para as quais foi arrastada.

Uma cadeira de palha com um respaldar apenas trabalhado, que havia na prisão do Templo. Um jogo de papelão que ela usava para entreter seus filhos, e assim desviar suas frágeis atenções da desgraça que os assediava. Uma camisa remendada, uma das poucas peças que lhe foram restando. Uma singela coifa de viúva, que usou após a decapitação de seu marido [foto ao lado]. O fim se aproxima.

Entre essas lembranças, há um salpico de folhetos grosseiros que eram difundidos pelas sociedades revolucionárias. Bicos de pena ou estampas, obras de gravuristas mais aptos a produzir panfletos imorais, apresentam a família real e a própria Maria Antonieta sob formas monstruosas, ridículas, que convidam ao sarcasmo ou ao ódio. Reproduzem as torpes calúnias articuladas por uma máquina infernal, que atiçou o ódio e a sede de vingança das chusmas revolucionárias.

Maior na tragédia do que na glória da realeza

No meio daqueles pobres objetos pessoais e torpes panfletos, encontramos a patética despedida escrita pela rainha para seus filhos, pouco antes de ser levada ao patíbulo. Está numa página do livrinho de orações que ela rezava piedosamente na prisão: “16 de outubro, 4hs e meia da manhã. Meu Deus, tende piedade de mim! Meus olhos não têm mais lágrimas para chorar por vós, meus pobres filhos; adeus, adeus! Maria Antonieta” [foto ao lado].

O acachapante corredor escuro se estreita cada vez mais, até morrer junto ao famoso bico de pena de David. Nele o pintor reproduziu, com rápidos traços, a rainha na charrete que a conduziu ao cadafalso.

Despojada de tudo (foto), com os cabelos tosados para não prejudicarem a lâmina da guilhotina, os braços brutalmente amarrados nas costas, ela conserva a altaneria régia que vence as fronteiras da morte. O olhar seguro da dignidade de sua condição e da sua inocência, confiante na misericórdia divina. Ela vai suportar a derradeira humilhação, ostentando a grandeza de filha de imperadores e esposa de rei. Na tragédia ela é fiel ao berço que a viu nascer, e à real família em que ingressou no dia de seu casamento.

Os percursos coincidem e chegam ao seu final: o da vida de Maria Antonieta e o da exposição. Mas a projeção daquela rainha –– que encarnou, malgrado suas fraquezas, os charmes da Cristandade –– não parece terminar. Pelo contrário, agiganta-se com o passar dos anos. Foram as minhas impressões naquela memorável visita.

Veja:
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