Cotas na Universidade: achatamento e luta de classes
31/08/2004
Luís Dufaur
Em vez de elevar o nível de ensino público, o arbitrário
sistema de cotas empurra candidatos despreparados para universidades, não
reconhece os méritos dos alunos e instaura clima de luta de classes
—
“Você que é negro roubou a minha vaga!” dizia, apontando
o dedo, um jovem reprovado no vestibular.
—
“Você que é branco que roubou a minha!”, respondia o
outro.
A discussão saiu numa charge. Mas é um sinal preocupante, pois
reflete situações que surgem com o sistema de cotas nas universidades,
que se tenta implantar no País.
Seguindo esse sistema, os alunos são classificados pela sua condição
sócio-econômica e pela raça. As vagas na universidade são
distribuídas segundo essa classificação. Em geral, 50%
são reservadas para pobres, negros, índios e deficientes físicos
vindos da escola pública. A proporção poderá ser
adaptada, em cada Estado, em função dos dados do censo. Como
o sistema não cria novas vagas, os restantes 50% das vagas irão
para todos os demais candidatos. Estes terão que obter uma nota mínima
bem mais alta. Assim, cria-se campo fértil para tensões: pobres
X ricos; negros X brancos; escola pública X privada.
Vista aérea
do Campus da Unicamp. Uma das primeiras universidades do País
que adotou o sistema de cotas |
No Estado do Rio, por lei, 50% das vagas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UNERJ) são
para estudantes de baixa renda, sendo 20% para negros e 5% para deficientes
físicos e minorias étnicas. A Universidade de Brasília
(UnB) foi a primeira instituição federal a fazer a inscrição
por cotas raciais. A Universidade Federal do Paraná (UFPR)(1) e a Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp)(2) adotaram normas no mesmo sentido. O presidente
Lula anunciou que, em aras da “igualdade racial”, estenderia o
sistema de cotas a todo o País. As universidades privadas serão
atingidas por meio do Programa Universidade para Todos.(3)
Desde o início, as críticas se multiplicaram até entre
os supostos beneficiados, porque as cotas geram múltiplas contradições.
Sistema de cotas nos EUA: experiência desastrosa
As cotas impõem uma camisa de força à universidade, em
nome de um igualitarismo abstrato mas radical, que colide com o modo de ser
do brasileiro. Por isso, soam alheias à realidade.
No Brasil, a proposta pode parecer nova. Mas nos EUA é velha de mais
de 30 anos. Naquela nação, as cotas apareceram após os
conflitos raciais dos anos 50-60. Mas hoje são tidas como sumamente
contraproducentes. Os argumentos em que se apóiam — muitos deles
tirados do líder esquerdista Martin Luther King — hoje voltam-se
contra os seus propugnadores.
Pete Du Pont, ex-governador de Delaware e presidente do National Center for
Policy Analysis, de Dallas, apontou algumas das mais danosas conseqüências
das cotas. Alunos ingressavam nas universidades com notas abaixo das de muitos
outros, que eram injustamente preteridos por causa da sua raça. O
Ministério do Trabalho ordenava aumentar a pontuação
dos postulantes a empregos por conta de categorias raciais, desconsiderando
candidatos com mais títulos ou méritos. Esta última
prática foi declarada ilegal em 1991, mas apesar disso não
cessou a ofensiva igualitária. Chegou-se ao absurdo de a Orquestra
Sinfônica de Detroit ser apontada por não ter a cota certa de
músicos negros. Ocorria que os artistas eram escolhidos por uma comissão
colocada detrás de um biombo, para selecioná-los apenas pela
qualidade da execução musical...
“
Se a nossa política é falsificar a medição das
habilidades em lugar de melhorar as aptidões dos menos hábeis,
então nós nos enganamos a nós mesmos e pomos nossa sociedade
em risco”, concluiu Du Pont.(4) O argumento é digno de ser retido:
o melhor é trabalhar para melhorar as aptidões dos menos hábeis.
Thomas Sowell |
Thomas Sowell, renomado intelectual americano, publicou em março uma
documentada pesquisa sobre as ações afirmativas e cotas na Índia,
Malásia, Sri Lanka, Nigéria, EUA e outros países.(5) Ele
constatou toda espécie de desonestidades: minorias que apareciam ou
cresciam um pouco por toda parte, falsificações de raça
etc. Mas o mais grave é que as políticas de preferências étnicas
acarretaram ódio racial. Na Índia, devido a tal política,
as violências quadruplicaram o número de mortos. Na Nigéria
e no Sri Lanka, as preferências raciais originaram guerras civis. Nos
EUA, os conflitos raciais só aumentaram. Sowell mostra que as cotas
não são necessárias. Pois, um pouco por toda parte, os
estudantes sinceramente aplicados melhoraram a sua situação educaram-se
e encontraram bons postos de trabalho.(6)
Desestímulo aos bons alunos de todas as categorias
Argumenta-se que as cotas incluirão na universidade alunos de categorias
sociais ou raciais desfavorecidas. Esses seriam aprovados no vestibular com
notas baixas e vagas garantidas a priori. Assim, em julho deste ano, nenhum
dos candidatos aprovados pelo sistema de cotas no vestibular, de 15 entre
61 cursos da UnB, tirou nota suficiente para obter vaga pelo sistema normal.(7)
O vestibular é só o primeiro passo. Depois os cotistas terão
cursos e exames regulares. Mas quem entrou sem estar qualificado, por causa
das cotas, corre sério risco de fracassar e desistir logo adiante. A
lógica das cotas impõe que, mais tarde, se facilitem também
os exames para os incluídos. Nessa lógica ainda, o governo deverá impor
que o mundo do trabalho inclua os cotistas. Pois estes, pelo simples fato de
serem cotistas, serão suspeitos de duvidosa qualificação
profissional. No fim do processo, torna-se inevitável que a universidade
e a sociedade fiquem engessadas pela planificação estatal.
Esse pernicioso efeito verificou-se nos EUA, onde o regime de cotas criou “uma
nação na qual fatores discriminadores arbitrários, como
a cor da pele, gênero ou etnia, são critérios primários
para contratações acadêmicas, concursos de obras públicas,
admissões e promoções no emprego”, escreveu Valery
Pech, líder da luta antidiscriminação no Colorado, EUA.(8)
De imediato, no Brasil, os méritos dos bons alunos das escolas públicas
ficarão desvalorizados, enquanto oportunistas poderão abrir caminho.
Mas a filosofia igualitária que inspira o sistema de cotas não
leva em consideração tais evidências...
Cotas prejudicarão negros e minorias raciais
O governo de
Bill Clinton adotou one drop (uma gota(. Basta ter uma gota de sangue
negro para ser considerado black (negro). |
O sistema alega querer favorecer os negros. Mas o que é um negro? O
IBGE adota as classificações preto (6,2% da população)
e pardo (39%). Porém, como a miscigenação no Brasil atingiu
todas as formas e graus, os pesquisadores catalogam pretos e pardos como negros.
Copiaram o critério one drop (uma gota), adotado pelo governo de Bill
Clinton nos EUA: basta ter uma gota de sangue preto para ser black (negro).
Mas como classificar uma pessoa quando ela tem origem nipônica, alemã,
indígena, italiana? Segundo este critério, se tem uma gota de
sangue negro, será um negro, ainda que se pareça muito mais com
um japonês.
A UnB considera negro todo aquele que se declare tal e tenha o “fenótipo
de negro”. Ou seja, “cara de negro”.(9) E manda fotografar
os candidatos para uma comissão julgar se de fato são negros.
O lado odioso do método fica evidente. Abre-se assim margem para situações
constrangedoras, arbitrariedades, absurdos lógicos, éticos e
constitucionais,(10) além das inevitáveis chicanas, azedumes
e atritos.
Aliás, atritos forçados. É expressivo o caso de uma aluna
cotista e negra da UERJ, que declarou ao site Mundo Negro: “Por incrível
que pareça, os meus colegas me surpreenderam. Ainda não vivenciamos
nenhum tipo de preconceito partindo deles”.(11) Em sentido contrário,
um dos promotores das cotas na UnB, o professor José Jorge de Carvalho,
do Departamento de Antropologia, desvendou o fundo de estímulo do sistema à luta
de classes: “Há poucos negros na universidade e isso dificulta
que eles se unam para lutar por seus direitos. É preciso mudar o tipo
de relação que existe na academia. E isso só vai acontecer
quando houver vários negros lá dentro”.(12)
O exemplo americano, mais uma vez, é esclarecedor. James Landrith Jr.,
editor das publicações “The Multiracial Activist” e “The
Abolitionist Examiner”, após três décadas de cotas
e ações afirmativas, concluiu: “Estas classificações
raciais não acabam com o 'racismo' nem o diminuem. Elas são uma
segregação de corpo, mente e espírito pela coerção
do Estado. Elas violam os mais básicos e fundamentais princípios
da privacidade e da liberdade. Estão inteiramente erradas, e se queremos
sobreviver como nação livre, não podemos permiti-las”.(13)
Para George Will, da revista “Newsweek”, a classificação
racial dos cidadãos leva o país para uma balcanização.
E Robyn Blumner escreveu na “Jewish World Review”: “Talvez
por catalogar tudo em termos raciais, nós estamos exatamente exacerbando
o problema. [...] Pode ser que a unidade racial chegue mais facilmente se pararmos
de falar em raça. E não somente parar de falar, mas parar de
analisar e catalogar as pessoas segundo esses critérios”.(14)
Regressão às classificações escravagistas?
Por dados do
Instituto de Estudo do Trabalho e Sociedade, a participação
do s engros no trabalho formal no Brasil cresceu de 37,31% para 38,66%
desde 1990 |
Outro pretexto argüido é reparar “injustiças históricas”.
Entretanto, os problemas de índole histórica resolvem-se no seu
horizonte próprio, ou seja, numa perspectiva histórica. Foi o
caso da escravatura generalizada na Europa pelo paganismo antigo. A Igreja
extirpou-a completamente com um trabalho histórico eficaz, continuado,
sábio e paciente. No fim da Idade Média não havia mais
escravos no Velho Continente.
Porém as cotas raciais, como consignou Susane M.J. Heine no “The
Multiratial Activist”, fazem-nos retroceder na História. Ela lembra
a primeira coisa que se fazia com os escravos que desciam dos navios: classificá-los
pela cor da pele. E acrescenta: “Certamente há uma ironia surrealista
na idéia de que a esquerda sustente um sistema de classificação
racial, que é uma criação e um instrumento dos escravagistas.
A cacofonia e a fragmentação de objetivos, a pura chicana, que
encharcam o que é de esquerda no movimento pelos direitos civis, hoje é uma
desgraça”.(15) Não é, portanto, com os artifícios
infeccionados da luta de classes que se vão resolver na hora e na marra
as injustiças que possam existir.
O Instituto de Estudo do Trabalho e Sociedade forneceu dados que mostram a
artificialidade do sistema proposto. Com efeito, a participação
dos negros no trabalho formal cresceu de 37,31% para 38,66% desde 1990. Os
empregadores negros aumentaram de 22,85% para 25,44%. Bem ao estilo brasileiro,
as relações e proporções vão se ajeitando
cordatamente, sem estardalhaço e sem atritos.(16)
Solução: elevar a qualidade do ensino público
No caso brasileiro, se há um grave erro histórico a corrigir,
ele tem uma solução bastante simples. Ela é apontada maciçamente
por pais de alunos, professores, estudantes e especialistas: elevar a qualidade
do ensino público. Trata-se de restaurar o ensino, excluindo as ideologias
niveladoras ou socializantes. Esta é a grande ação positiva
necessária para promover os estudantes de poucos recursos.
Basta considerar que o Sistema Nacional de Avaliação do Ensino
Básico apontou a respeito da 3ª série de ensino médio — última
série antes dos vestibulares — que 7 de cada 10 estudantes têm
um nível de aprendizado qualificado muito crítico, sobretudo
nas escolas públicas.(17) Esta é uma amostra do mal que é preciso
eliminar. E que não se conserta incluindo por lei alunos despreparados
nas universidades.
Negativismo da “ação afirmativa”
As cotas surgiram
após os
conflitos racionais dos anos 60
nos Estados Unidos.
Na foto, à esquerda, o líder esquerdista Martin Luther
King |
As cotas pretendem ser uma “discriminação (ou ação)
afirmativa”. Ou seja, uma distorção da realidade, aceita
como mal menor, para mudar a situação o mais rápido possível.
A expressão mascara o lado indissociavelmente negativo do sistema. As
cotas voltam-se de fato contra os estudantes mais aplicados. Para estes, a
tão falada igualdade não existe. Pior do que isso, aplica-se
uma política apriorística injusta e irritante. “É uma
discriminação às avessas, em que o branco não tem
direito a uma vaga mesmo se sua pontuação for maior”, explicou
o jurista Ives Gandra.(18)
O sistema é também negativo em relação às
escolas particulares que formam camadas de futuros universitários de
escol. É também negativa em relação às famílias
que fizeram grandes sacrifícios para custear a formação
dos seus filhos nessas escolas, tendo em vista a decadência do ensino
público estatizado e socializado.
Contudo, o ministro da Educação, Tarso Genro, considera que essa
política afirmativa será boa, na medida em que suscita oposições
entre ricos e pobres: “quando não há reação
de privilegiados e poderosos, é porque não há política
afirmativa”.(19)
* * *
É
de se temer que as cotas gerem no Brasil os amargos frutos produzidos nos EUA.
Provavelmente eles serão acentuados pela tendência para a luta
de classes, que a Teologia da Libertação e as esquerdas comuno-progressistas
tentam inocular por todos os Estados. Esta é mais uma grave ameaça
a nosso País, onde predominava a convivência pacífica entre
todos os brasileiros, não importando a que raça pertençam,
pois todos aqui se relacionam harmonicamente como numa imensa família.
Notas:
1. Cfr. “O Estado de S. Paulo”, 8-5-04.
2. Idem, 26-5-04.
3. Idem, 14-5-04.
4. Colorblindness Is Golden – Will Californians vote to join the human
race?, American Civil Rights Coalition, http://www.acrc1.org/ouside.htm
5. Cfr. Thomas Sowell, Affirmative Action Around the World: An Empirical Study,
Yale University Press, 2004.
6. Cfr. “O Globo”, 29-6-04.
7. Cfr. “O Globo”, 13-7-04. Merece destaque entretanto que, em
46 dos 61 cursos, o melhor colocado dos cotistas tirou nota suficiente para
passar pelo sistema normal. E em seis cursos os cotistas tiraram absolutamente
a melhor nota. Em outras palavras, as cotas não são necessárias
para os bons alunos negros ou formados em escolas públicas.
8. “Kudos California! You Are Leading Our Nation in Restoring Basic Freedoms”,
http://www.acrc1.org/kudos.htm
9. “O Estado de S. Paulo”, 16-6-04.
10. cfr. http://www2.uerj.br/~clipping/marco04/d20/oglobo_unb_pardos_so_se_forem_negros.htm
11. http://www.mundonegro.com.br/noticias/?noticiaIDÂ271
12. http://www.comciencia.br/reportagens/negros/06.shtml
13. “The Multiracial Activist”, Outubro-novembro 2001. http://www.multiracial.com/abolitionist/word/landrith3.html
14. “Jewish World Review”, 7-12-2001, http://www.jewishworldreview.com/cols/blumner120700.asp
15. Racial Classification Is Not a Civil Rights Measure, “The Multiracial
Activist”, Outubro-novembro 2003. http://www.multiracial.com/abolitionist/word/heine.html
16. Cfr. “O Globo”, 20-6-04.
17. Cfr. “OESP”, 8-6-04.
18. http://www.comciencia.br/reportagens/negros/06.shtml
19. “O Estado de S. Paulo”, 14-5-04.
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