Mont Saint-Michel


03/09/2009

W. Gabriel da Silva

Píncaro de força, beleza e fé

Quem observe o mapa da França, notará em sua costa ocidental, banhada pelo Atlântico, duas pontas ou imensas penínsulas: a maior, toda recortada em ilhas e pequenas baías, a desafiar o imenso oceano; a menor, lembrando um chifre voltado para a Inglaterra, situada ao norte. A primeira corresponde à Bretanha; e a segunda pertence à Normandia. Uma baía separa as duas penínsulas, e um rio, o Couesnon, divide os dois grandes ducados históricos.

Pirâmide maravilhosa

No fundo dessa baía, circundada por imensos bancos de areia caprichosamente desvelados ou recobertos pelas águas ao sabor das marés, surge aos olhos do viajante –– “como uma coisa sublime, uma pirâmide maravilhosa”, no dizer de Victor Hugo –– a pequena ilha de rochedos encimada por gigantesca abadia, que se eleva em esplendorosa agulha a apontar para o céu. A seus pés, uma graciosa aldeia e vigorosos bastiões de defesa militar. É o Monte São Miguel — “Le Mont Saint-Michel, merveille d’Occident”, como tão bem soa em francês.

Para o literato Émile Bauman, no monte e nos arredores todas as horas são de beleza: “O céu engrandece as areias e as areias parecem engrandecer o céu”.

Madame Sévigné escreveu à sua filha, na época de Luís XIV, lembrando como o via de sua janela (ela habitava na região): orgulhoso e altaneiro, cheio de beleza.

E o literato Guy de Maupassant olhava a abadia como um castelo fantástico, a erguer-se escarpada longe da terra, maravilhosa como um palácio de sonho, inverossimilmente estranha e bela.

Neste cenário fantástico, o monte impressiona ao emergir das brumas da manhã com sua silhueta imprecisa, ou como esplendoroso monumento em dias límpidos.

Num relance podem-se ali vislumbrar o píncaro transcendente da visão religiosa, o espírito da fortaleza militar e a doçura de viver da pacífica aldeia do “menu peuple de Dieu” — o povinho que ainda praticava os Mandamentos.

Como pôde transformar-se em maravilha do Ocidente essa simples ilhota granítica de 900 metros de circunferência e 80 metros de altura?

A resposta a essa questão exige uma descrição ao menos sucinta da geografia do lugar e o relato dos principais fatos que ali se deram.

O rio e o mar

Durante séculos os bancos de areia vinham se movimentando e se acumulando em torno da pequena ilha. Movimentando-se, porque a baía onde se encontra o Mont Saint-Michel está sujeita a grande diferença de nível entre as marés altas e baixas. Em certos dias, chega a 14 ou 15 metros — das maiores da Europa — devido a fatores naturais como as fases da lua, a conjunção dos astros e a rotação da Terra. Assim, o mar pode recuar muitos quilômetros numa manhã e voltar na tarde do mesmo dia, para inundar todas as pastagens costeiras.

Os bancos de areia movimentavam-se muito, não só por causa das marés, mas também pressionados pelo rio Couesnon, que deságua no mar em frente ao Mont Saint-Michel e estabelecia o limite entre a Bretanha e a Normandia. A mobilidade das areias determinava uma mobilidade do curso do próprio rio em sua foz. Assim, tendo o monte pertencido à primeira, em certo momento passou à segunda, levando os bretões a cunhar o ditado: “Le Couesnon a fait folie / Cy est le Mont en Normandie” (O Cuesnon fez uma loucura e colocou o monte na Normandia).

As aparições do Arcanjo

Segundo as crônicas, no ano 708 o Arcanjo São Miguel apareceu duas vezes a Santo Aubert –– Bispo de Avranches, cidade situada no fundo da baía — ordenando-lhe que erguesse uma capela em sua honra no rochedo que então se chamava Monte Tumba (ou Túmulo).

Inseguro quanto à realidade da visão, o bispo protelou a construção da capela. Apareceu-lhe então pela terceira vez São Miguel, tocando-lhe a cabeça com o dedo, de tal modo que Aubert não pôde mais duvidar. Esse sinal ficou marcado indelevelmente no crânio do santo, durante muito tempo exposto no tesouro da basílica de São Gervásio, de Avranches.

 


Capela de Santo Aubert no Mont Saint-Michel
Há exatos 1300 anos, em 16 de outubro de 709, Santo Aubert consagrou ali a primeira igreja em honra do Arcanjo, e o monte tomou a partir de então o nome do Chefe da Milícia Celeste.

Durante a Idade Média, o Monte São Miguel tornou-se um dos mais importantes centros de peregrinação, ao lado de Roma e de Santiago de Compostela. Os penitentes tomavam o “caminho do Paraíso” em busca do auxílio do Arcanjo.

O rei e a “Maravilha”


Estátua do Arcanjo São Miguel, obra de Emmanuel Frémiet
Em 966, a pedido do duque da Normandia, os monges beneditinos instalaram-se no Monte São Miguel, e outra igreja construiu-se ali. No século XI, nova e magnífica igreja abacial ergueu-se no cume do rochedo, sobre um conjunto de criptas: os medievais a viam como figura da Jerusalém celeste. No século seguinte fizeram-se novas ampliações na abadia.

Em 1204, uma parte da abadia foi destruída por um incêndio. No mesmo ano o rei Filipe Augusto, avô de São Luís, venceu definitivamente os normandos, anexando o ducado à Coroa de França. Para manifestar sua gratidão por essa conquista, fez uma doação à Abadia de São Miguel, o que permitiu a construção do conjunto gótico hoje conhecido como “a Maravilha”, em lugar do que fora destruído no incêndio.

Ao longo da Guerra dos Cem Anos (séculos XIV e XV), várias construções militares deram à ilha um caráter de fortaleza indomável, tendo resistido a um cerco de mais de 30 anos feito pelos ingleses.

Transformada em prisão durante a Revolução Francesa e o império napoleônico, a abadia chegou ao final do século XIX em estado lamentável. Em 1874, passou à tutela dos Monumentos Históricos, ou seja, do Estado francês. Felizmente a influência artisticamente benéfica da escola de Viollet-le-Duc se fez sentir, e o campanário da abadia pôde ser coroado com a audaciosa agulha encimada pela estátua dourada do Arcanjo São Miguel vencendo o dragão infernal, obra de Emmanuel Frémiet, concluída em 1897.

Passados mais cem anos, a estátua do Arcanjo foi redourada, e é assim que a vemos hoje.

Considerado o Monte Saint-Michel como um monumento, sem dúvida algo se faz para conservar essa maravilha. Atualmente estão em execução obras gigantescas, que têm por objetivo devolver à baía o antigo movimento das águas e areias, e assim impedir o assoreamento ocorrido nos últimos tempos.


Preparando o omelete
Uma coisa, porém, falta aos homens de hoje: o espírito sobrenatural, que moveu os antepassados a erguer essa obra sobre-humana de força, beleza e fé.

Omeletes e cordeiro pré-salgado


Cordeiro pré-salgado
Paralelamente ao fervor religioso que deu origem às peregrinações na Idade Média, uma pitoresca aldeia foi-se formando aos pés do Monte São Miguel, voltada ao atendimento dos peregrinos. Toda a população do povoado (nunca foi grande, e ainda hoje contém menos de 100 pessoas) sempre teve sua vida voltada para o acolhimento dos peregrinos dos tempos remotos e dos turistas na atualidade.

No século XIX houve um reafervoramento desse espírito religioso e das peregrinações, tendo como conseqüência dois subprodutos culturais na região: as famosas omeletes da Mère Poulard e a carne de cordeiro pré-salgada.

Quanto à carne de cordeiro pré-salgada, é assim chamada porque os rebanhos de ovelhas que se criam junto ao Monte São Miguel alimentam-se de capim intermitentemente banhado pelas águas salgadas do mar. Os animais — trata-se de uma variedade da raça Suffolk — crescem então com uma carne rica em sal e iodo, muito apreciada pelos gastrônomos.

Veja:
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