A conversão de Clóvis, rei dos francos


10/07/2010

Guilherme Félix de Sousa Martins


São Remígio batiza Clóvis

Uma conversão muda os rumos da História

No ano de 496, o reino de Clóvis estava na iminência de sofrer uma invasão por parte dos alamanos, povo germânico que no passado havia se unido aos francos contra o Império Romano. Tendo já enfrentado os francos ripuários,(3) e sendo por eles repelidos na batalha de Tolbiac,(4) os alamanos voltaram à carga, ameaçando desta vez também os francos salianos chefiados por Clóvis.

 Os exércitos rivais se enfrentavam nos campos de Toul, e a fama dos guerreiros francos não fazia senão aumentar a bravura dos alamanos. O exército de Clóvis, após lutas ferozes, tendia a recuar, e a debandada era iminente. Num relance, Clóvis viu passarem diante de si todos os horrores de uma eventual derrota e os desastres da fuga. A invocação dos seus deuses fora em vão. Lembrou-se então do Deus de Clotilde, e lhe veio à mente a figura de Jesus Cristo, cheio de bondade e de doçura, Aquele que era, segundo sua esposa, “o vencedor da morte e o príncipe dos séculos futuros”. Em seu desespero, banhado em lágrimas, lançou um brado: “Jesus Cristo, tu que és, segundo Clotilde, o Filho do Deus vivo, socorre-me em minha angústia; se tu me concedes a vitória, crerei em ti e me farei batizar”.

Assim narra Godefroy Kurth o desfecho da batalha:

“Esse grito representa o próprio povo no momento mais solene de sua existência. É um pacto proposto a Cristo pelo povo franco, e que Ele ratifica. Pois, tão logo Clóvis o tinha pronunciado, a sorte do combate inverte-se bruscamente. Os soldados de Clóvis retomam a coragem. A batalha se restabelece, o exército franco volta à carga, os alamanos se curvam, seu rei sucumbe na refrega. Eles depõem as armas, e no próprio campo da batalha pedem clemência ao rei dos francos. Este os trata com doçura e generosidade, e contentando-se com sua submissão, põe fim à guerra”.(5) 


Aqui São Remígio batizou Clóvis Rei dos Francos (Texto no solo da catedral de Reims)

Marco do nascimento da civilização medieval

Pode-se bem comparar tal fato ao ocorrido com o imperador Constantino na batalha de Ponte Mílvia: este fechou os anais do mundo pagão antigo, o de Clóvis abriu os anais do mundo cristão medieval. O destino do povo franco, e com ele o da Europa cristã, começa aí a ser traçado. Aquele rei pagão, que começava apenas a expandir seus domínios, num mesmo movimento estende seus braços ao Deus Salvador e desloca o centro de gravidade da História: cria a primeira nação católica e atrai para suas mãos o báculo da civilização, abandonado por Roma.

A conversão de Clóvis não foi, certamente, um ato improvisado, pois nada de grande se faz de repente. É certo que, ao redor de Clóvis, tudo colaborava para conduzi-lo a isso: a ação benéfica e constante de sua esposa, as orações e esforços apostólicos dos bispos e missionários (entre todos, os do grande São Remígio), a crescente adesão à fé verdadeira por parte de seus súditos galo-romanos e até bárbaros. Sua consciência ficou, por assim dizer, sitiada. Faltava porém a adesão de sua vontade, que somente poderia provir de um ato livre e espontâneo seu.

Ele teria podido — a exemplo de outros bárbaros ilustres, como Gondebaldo, rei dos burgúndios; ou Teodorico, rei dos ostrogodos — permanecer surdo a tantos apelos e recusar-se a tomar a decisão transcendental. A grandeza de seu ato vem de ter aberto sua alma, na plenitude de sua liberdade, para a ação da graça que o chamava a uma tão grande elevação.

A vitória de Clóvis teve como efeito direto o desfazimento do perigo alamano. Tendo sido por séculos o terror do império, e depois se tornado terror dos francos, esse povo passou a inspirar apenas sentimentos de piedade aos vizinhos. E o rei dos francos, com seu ato de clemência, inaugurou sua entrada na família majestosa dos reis cristãos. Historicamente, essa vitória e a conseqüente conversão do rei franco abre caminho para a constituição da civilização medieval.

Concluamos com G. Kurth: “De onde vem a grandeza histórica do povo franco? Vem inteiramente do fato de a vontade transcendente criadora do mundo moderno [leia-se medieval]tê-lo escolhido. Na aurora desse mundo ele foi chamado, e atendeu ao apelo. Com uma alegre confiança, deu sua mão à Igreja Católica, foi seu discípulo e mais tarde seu enérgico defensor, e recebeu d’Ela a chama da vida, para portá-la através das nações”.(6)

____________

Notas:

1. “Bárbaros: nome dado pelos romanos a todos os que não participavam da civilização greco-romana” (Petit Larousse de l’Histoire de France, 2009).

2. Nome escolhido pelo próprio povo, e que equivale em francês a fiers et hardis (altivos e ousados).

3. Ramo do povo franco que habitava a margem direita do rio Reno, e cuja capital era a cidade de Colônia.

4. Abatalha de Tolbiac passou para a História como sendo aquela em que se deu a conversão de Clóvis. Entretanto, segundo Godefroy Kurth, historiador belga e grande autoridade na matéria, o certo é atribuir tal título à batalha vencida poucos dias antes pelos ripuários, governados pelo rei Sigeberto. O responsável dessa falsa atribuição teria sido um historiógrafo do século XVI, que baseou sua preferência em meras conjecturas subjetivas.

5. Godefroy Kurth, Clovis – Editions de la Seine, 1996, p. 286.

6. Op. cit, p. XX.

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