Ser tolerante? Sim, não? Por quê?


15/10/2004

Plinio Corrêa de Oliveira

— II —


A tolerância, virtude perigosa


Cerimônia ecumênica na Alemanha causa perplexidade em muitos católicos

Tratando da tolerância, estabelecemos que esta, bem como sua contrária, que é a intolerância, não se podem dizer intrinsecamente boas nem intrinsecamente más. Em outros termos, há casos em que tolerar é um dever, e não tolerar é um mal. E outros casos há em que, pelo contrário, tolerar é um mal, e não tolerar é um dever.

Para evitar a aridez de uma exposição exclusivamente doutrinária, figuremos a situação de um oficial que nota em sua tropa graves sintomas de agitação. Põe-se para ele um problema: a) será o caso de punir com todo o rigor de justiça os responsáveis? b) Ou será o caso de tratá-los com tolerância? Esta segunda solução abriria campo a outras questões. Em que medida e de que maneira praticar a tolerância? Aplicar penas brandas? Não as aplicar, chamando os culpados e aconselhando-os afetuosamente a mudar de atitude? Fingir que se ignora a situação? Começar talvez pela mais benigna dessas soluções e ir aplicando sucessivamente as demais, à medida que os processos suasórios ou brandos se forem patenteando insuficientes? Qual o momento exato em que se deve renunciar a um processo para adotar outro mais severo?

Estas são questões que forçosamente assaltarão o espírito de muito oficial, mas também de qualquer pessoa investida em mando ou responsabilidade na vida civil, desde que tenha exata consciência das suas obrigações. Qual o pai de família, o chefe de repartição, o diretor de empresa, o professor, o líder, que não tenha esbarrado mil vezes em todas estas questões? Quantos males obviou, por as ter resolvido com perspicácia e vigor de alma? E com quantos teve de arcar, por não ter dado solução acertada às situações em que se encontrava?

Os “antivorcistas” da boca para fora


Na realidade, a primeira medida que deve tomar quem se vê em tal contingência consiste em fazer um exame de consciência para se premunir contra as ciladas que seu feitio pessoal lhe possa criar.

porque há em relação a eles uma simpatia generalizada, da qual participam freqüentemente aqueles mesmos que os combatem. Devo confessar que, ao longo de minha vida, tenho visto nesta matéria os maiores disparates. E quase todos eles conduzindo ao excesso de tolerância. Os males de nossa época tomaram o caráter alarmante que atualmente apresentam

Há, por exemplo, antidivorcistas. Mas, dentre estes, numerosos são os que, opondo-se embora ao divórcio, têm um feitio de espírito exageradamente sentimental. Em conseqüência, consideram romanticamente os problemas nascidos do “amor”. Postos diante da situação difícil de um casal amigo, esses antidivorcistas julgarão sobre-humano, para não dizer inumano, exigir do cônjuge inocente e infeliz que recuse a possibilidade de “refazer sua vida” (isto é, dar morte à sua alma pelo pecado). Da boca para fora, continuarão a “lamentar o gesto” deste último, etc., etc. Mas, quando se puser para eles o problema da tolerância, terão toda uma montagem interior feita para justificar as condescendências mais extremas e aberrantes.

De onde veio a estes a deliberação de tolerar, tão mal a propósito, o câncer roedor da família? É que no fundo havia neles uma mentalidade divorcista.


Absurdo da arte moderna

Os amargos frutos devidos ao excesso de tolerância


Contudo, não paremos aqui. Tenhamos a coragem de dizer a verdade inteira. O homem moderno tem horror à ascese. É-lhe antipático tudo quanto exige da vontade o esforço de dizer “não” aos sentidos. O freio de um princípio moral lhe parece odioso. A luta diária contra as paixões se lhe afigura um suplício chinês.

E por isto não é só em relação aos divorciados que o homem moderno, ainda quando dotado de bons princípios, é exageradamente complacente. Há legiões inteiras de pais e professores que, por isto mesmo, são indulgentes em excesso para com seus filhos ou alunos. E o estribilho é sempre o mesmo: coitadinho... Coitadinho porque tem preguiça, recebe mal as advertências dos mais velhos, come doces às escondidas, freqüenta más companhias, vai a maus cinemas, etc. E porque é coitadinho, raras vezes recebe o benefício de um castigo severo. No que dá tal educação, não é necessário dizê-lo. Os frutos aí estão. São milhares, milhões de desastres morais ocasionados por uma tolerância excessiva. “O pai que poupa a vara a seu filho, odeia seu filho", ensina a Escritura (Prov. 13, 24). Mas hoje, quem quer saber disto?

Ora, o mesmo se dá freqüentemente, mutatis mutandis, nas relações entre patrões e operários, e em todos os campos os exemplos se poderiam multiplicar.

Um exército em que os chefes tenham de usar habitualmente de uma tolerância sem limites com os seus subordinados não está apto a ganhar batalhas

Momentos para tolerar e momentos para não tolerar


Esta tolerância se apóia, é claro, em toda espécie de pretextos. Exagera-se o risco de uma ação enérgica. Acentua-se demais a possibilidade de as coisas se arranjarem por si mesmas. Fecham-se os olhos para os perigos da impunidade. E assim por diante.

Na realidade, tudo isto se evitaria se a pessoa que está na alternativa tolerar–não tolerar fosse capaz de desconfiar humildemente de si.

Tenho simpatias inconfessadas para com este mal? Tenho medo da luta que a intolerância traria? Tenho preguiça dos esforços que uma atitude intolerante me imporia? Encontro vantagens pessoais de qualquer natureza numa atitude conformista?

É só depois de um tal exame de consciência que uma pessoa poderá enfrentar a dura alternativa: tolerar ou não tolerar. Pois sem esse exame ninguém poderá estar certo de tomar em relação a si mesmo os cuidados necessários a fim de não pecar por excesso de tolerância.


Entrada de Henrique IV em Paris
A estampa reproduz uma procissão da Liga Católica em 1592. Para reagir contra a ofensiva protestante, antes da conversão de Henrique IV, os católicos franceses organizaram esta excelente associação religiosa e guerreira, amplamente apoiada pelo Papa São PioV. A intolerância da Liga para com os protestantes teve excessos, mas foi de inestimável valor para a causa da Santa Igreja.


Católicos hipertolerantes só argumentam com o coração


Outro excelente conselho para não se pecar por excessos de tolerância consiste em recear muito mais uma fraqueza nossa neste ponto, quando estão em jogo direitos de terceiros, do que quando se trata dos nossos.

Habitualmente, somos muitos mais “compreensivos” quando os outros é que estão em causa. Perdoamos mais facilmente o gatuno que roubou o vizinho do que o que assaltou nossa própria casa. E somos mais propensos a recomendar o esquecimento das injúrias do que a praticar este ato de virtude.

E neste ponto não percamos de vista o doloroso fato de que, segundo os primeiros impulsos de nosso egoísmo, Deus seria muitas vezes para nós um terceiro. Assim, somos muito mais inclinados a relevar uma ofensa feita à Igreja do que uma injúria feita a nós; a suportar a lesão de um direito de Deus do que de um interesse nosso.

Em geral, este é o estado de espírito dos católicos hipertolerantes. Sua linguagem é imaginativa, mole, sentimental. Só sabem argumentar — se é que a isto se pode chamar argumento — com o coração. Em relação aos inimigos da Igreja, são cheios de ilusões, atenções, obséquios e carícias. Mas ofendem-se terrivelmente se um católico zeloso lhes faz ver que estão sacrificando os direitos de Deus. E, em lugar de argumentar em termos de doutrina, transpõem o assunto para o terreno pessoal. Estão julgando que sou tíbio? Que não sei perfeitamente o que tenho de fazer? Estão duvidando de minha sabedoria? De minha coragem? Oh! não, isto eu não posso suportar. E seu peito arfa, seu rosto se enche de rubor, seus olhos se marejam de lágrimas, sua voz toma uma inflexão particular. Cuidado! Este hipertolerante está no auge de uma crise de intolerância. Todas as violências, todas as injustiças, todas as unilateralidades podem ser receadas por parte dele.(*)

* Catolicismo, nº 78, junho/1957 (os intertítulos são da redação).


A intolerância será sempre um mal?


· Plinio Corrêa de Oliveira


A confusão de idéias existente em nossa época exige por vezes que relembremos alguns conceitos, hoje menos supérfluos do que outrora. Com efeito, o mais imbecil dos Acácios ainda é um sábio em comparação com certos semeadores de palavras ocas e bombásticas de nossos dias.

Assim, é útil lembrar que intolerante é quem não tolera.

A intolerância será sempre um mal? A tolerância será sempre um bem? Há coisas que se devem tolerar. Outras não podem nem devem ser toleradas. Diria pois o Conselheiro Acácio que há situações em que a intolerância é uma grande virtude, e situações em que a tolerância pode ser um imenso pecado. Não há, pois, a menor razão para que se constitua em torno destas palavras um tabu. Acusar uma pessoa de intolerante, e com isto pretender atirar-lhe uma injúria, é muitas vezes um erro grave. Mesmo porque os excessos de intolerância são quase sempre muito mais toleráveis do que os excessos de tolerância.

Basta correr um pouco os olhos em torno de nós, para que verifiquemos que os excessos de tolerância são hoje imensamente mais numerosos que os da intolerância. Os pais que toleram maus jornais, maus livros e más companhias para seus filhos; as mães que toleram o rádio, mesmo quando enche a casa de declamações obscenas; as moças que toleram liberdades exageradas por parte de rapazes; os jovens que toleram, contrafeitos e vexados, a mofa e a risota dos prosélitos da impureza e da impiedade; as autoridades que toleram os desmandos e excessos dos subalternos; enfim, os professores, os patrões, os superiores hierárquicos de toda a escala civil costumam hoje em dia tolerar muito mais do que punir. E os raros superiores que sabem punir, fazem-no em muitos países tolerando e até fomentando o mal, e punindo intransigentemente o bem.

Tudo isto é de tal maneira evidente, que ninguém ousaria afirmar que o grande problema de nossos dias decorre do excesso de severidade dos pais, dos extremos de recato das moças e dos exageros de desassombro dos jovens virtuosos. Assim, pois, a que propósito se encontra em certas penas uma tão perseverante luta contra a intolerância, e tão geral olvido das devastações feitas pela tolerância? Há aí um mistério que talvez só no dia do Juízo Final se possa desvendar.*

* “O Legionário”, nº 474, 12 de outubro de 1941.

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