Ser tolerante? Sim, não? Por quê?
15/10/2004
Plinio Corrêa de Oliveira
— III —
O laicismo dos Estados roubou à sociedade moderna “o sentir da
Igreja”
Antes da Revolução
Francesa, havia o regime de união entre Igreja e Estado. Os
imperadores e reis eram sagrados pelo Poder Espiritual |
Admitindo que seja o caso de praticar em dada situação a tolerância,
esta difícil e arriscada virtude, pergunta-se: como praticá-la?
Tolerar um mal é consentir em que ele exista. Ora, assim como o bem
produz, de si, efeitos bons, assim também o mal produz maus resultados.
De onde, quando se é obrigado a tolerar algo, deve-se circunscrever
quanto possível os maus efeitos dessa tolerância e preparar com
toda a diligência uma situação em que se torne ela supérflua
e o mal possa ser extirpado.
Em medicina, isto é elementar. Se alguém sofre de um tumor incurável
que, por motivos clínicos, não pode ser logo operado, o cuidado
do médico consiste em circunscrever de todos os modos os maus efeitos
da presença do tumor no organismo.
O dever de expulsar o lobo com pele de ovelha
São Pio
V |
Assim — para exemplificar — numa associação religiosa
entra um mau elemento. Ele difunde em torno de si um espírito de mundanismo,
de sensualidade, de relativismo doutrinário. Se a associação
está em condições de resistência excelentes, é o
caso de não expulsar imediatamente este membro, para tentar reformar-lhe
o espírito. Nesta hipótese, porém, o presidente do sodalício,
durante todo o tempo do “tratamento”, terá um olhar particularmente
atento sobre esse associado, suas relações, seu âmbito
de ação, etc. Ao menor sintoma, empregará todas as medidas
para que o contágio cesse. Mais ainda, preventivamente exercerá uma
ação contínua sobre os outros membros, a fim de os vacinar
contra o perigo. Procedendo assim, tal presidente terá usado de uma
tolerância verdadeiramente virtuosa, pois terá feito bem ao mau,
sem que daí decorresse mal para os bons.
Isto tudo dá trabalho, requer providências, toma tempo. Suponhamos
que o mesmo elemento mau da associação seja uma pessoa de rara
sedução, que imediatamente vai influenciando a todos. Como é muito
mais fácil influenciar para o mal do que para o bem, o presidente vê que
dentro em breve diversos associados terão sido inteiramente deformados,
sem que nada se possa ter feito em sentido contrário. Põe-se
diante dele uma alternativa: ou consente na permanência do membro mau,
e neste caso corre o risco de perder vários bons; ou expulsa o membro
mau, este muito provavelmente se perde e os bons se salvam, voltando à associação
a ordem, o bom espírito e a paz de outrora. Qual o seu dever? O caminho
só pode ser um. O bem de vários vale mais do que o bem de um.
O bem do inocente vale mais do que o bem do culpado. É preciso expulsar
quanto antes o lobo com pele de ovelha. Se não proceder assim, o presidente
terá traído seu dever e terá que prestar conta a Deus
pelas almas que poderia e deveria ter salvo, e que entretanto se perderam.
Após certa contemporização, a indispensável amputação
Suponhamos por fim outra situação. O indivíduo mau entra
na associação e começa a exercer sua ação
envolvente e rápida. No fim de pouco tempo, tal foi seu êxito
que, se o expulsarem, mesmo os melhores não compreenderão. Sua
expulsão determinará no sodalício uma crise na qual este
se dissolverá. E, o que é grave, dissolvida a associação,
seus membros, privados de todo amparo, correrão o risco de se perder.
O que fazer? Evidentemente, contemporizar. Mas contemporizar com solércia,
inteligência, decisão. Ser-lhe-á necessário empregar
todos os meios diretos ou indiretos para melhorar as disposições
da ovelha negra, e também para coibir-lhe a ação; e, ao
mesmo tempo, preparar os espíritos para compreenderem a necessidade
urgente de uma expulsão. Logo que os espíritos estejam preparados,
cumpre proceder à indispensável amputação. Ainda
aí a tolerância terá sido virtuosa, pois terá salvo
a sociedade, enquanto uma ação precipitada a teria perdido.
A laicidade contrária ao catolicismo
Destes princípios genéricos, passemos a um grande exemplo histórico. É a
questão da separação entre a Igreja e o Estado.
Como se sabe, antes da Revolução Francesa a união era
o regime vigente em todos os países católicos da Europa. E, nos
países protestantes, eram as seitas mais poderosas que estavam unidas à Coroa.
Em conseqüência dos princípios laicistas da Revolução,
a separação se veio introduzindo gradualmente ao longo do século
XIX e do século XX. Hoje em dia, na maior parte das nações
ocidentais, o Estado é laico.
Esta imensa transformação foi altamente prejudicial para a Santa
Igreja, pelo que exprime em si mesma. Pois é o fruto natural e típico
de uma tendência à laicização, que se fazia sentir
progressivamente em vários setores da cultura, da sociedade e da própria
vida no Ocidente. Ora, a laicização é o oposto da fé.
A fé é a raiz de todas as virtudes. E a virtude é condição
essencial para a salvação das almas. Assim, pode-se facilmente
imaginar quanto risco para estas existe na atmosfera laicista em que vivemos.
Se o fim da Igreja é salvar as almas, é fácil ver quanto
Ela é oposta a toda forma de laicismo. Dizemos estas coisas elementares
com tanto pormenor e clareza, pois hoje em dia até as coisas mais elementares
estão completamente esquecidas. Ou correm o risco de o ficar dentro
em breve. O contrário do catolicismo não é apenas o materialismo
ateu, mas também o laicismo liberal.
Desastre devido à débil reação católica
Por misteriosos desígnios da Providência, e sobretudo por deplorável
culpa dos homens, a reação católica não teve força
suficiente par impedir a laicização das nações
ocidentais. Posto o fato lamentável da separação entre
a Igreja e o Estado, o que fazer? Se não tivemos força para evitar
a separação, menos ainda a teríamos para impor sua imediata
revogação. Só havia um caminho: tolerar.
Há males muito graves que trazem consigo vantagens que, secundárias
embora, não deixam de ser preciosas. Pode-se dizer isto da separação.
No regime da união, a vida da Igreja estava tolhida por numerosas intervenções
dos governos, cada qual mais perigosa e irritante. Com a separação,
estas intervenções cessaram legalmente. Dado o valor inestimável
que tem a liberdade da Igreja, bem se compreende quanto proveito podia trazer,
debaixo deste ponto de vista, a nova situação. Convinha aproveitá-lo
integralmente.
De outro lado, a separação trazia inconvenientes. O mais grave
deles era a afirmação explícita, solene, provocante, de
que a religião é assunto de mero foro interno, pelo que o Estado
e todos os domínios da vida pública são e devem ser leigos.
Das instituições, este princípio influenciaria facilmente
todas as esferas da vida mental da nação: caso típico
de um fruto que reforça o efeito da própria causa. E com isto
viria uma debilitação do sensus Ecclesiae (o sentir da Igreja),
capaz de falsear em sua raiz e de combalir em seus frutos a vida religiosa
do país. Era mister tolerar o inevitável, mas empregar todos
os meios para obviar uma tão desastrosa conseqüência. Sem
isto, a tolerância, em lugar de ser reta e sábia, importaria num
desastre tão grande, que não há palavras para o qualificar
suficientemente.
Três
colunas elegantes e altivas: eis o que resta de um monumento que foi
outrora
símbolo de uma elevada cultura. Ruiu o Império Romano,
e com ele a civilização clássica. Na Cidade de
Deus, Santo Agostinho aponta como uma das causas mais ativas dessa
ruína a tolerância, cheia de timidez e imprevidência,
com que os católicos de seu tempo se haviam em face da corrupção
e dos erros que a sociedade romana herdara do paganismo. Do mesmo modo,
a tolerância displicente e comodista de inúmeros católicos
de nossos dias contribuiu gravemente para o laicismo estatal, expressão
do paganismo hodierno. |
Com uma simples funda, Davi abateu o gigante
Em outros termos, todo o mundo continuava a professar a tese: a separação é um
mal. Mas, na hipótese de então, ela era um mal menor. É o
que todos também aceitavam. Em conseqüência, cumpria tolerar
a separação... modorrentamente, pachorrentamente, preguiçosamente.
Enunciada a tese, falava-se da hipótese com uma resignação
que dava a entender que a separação estava destinada a perdurar
séculos, sem dano mais profundo para a Igreja. Em conseqüência,
pouco ou nada se fez para incutir uma noção clara dos riscos
desse regime, da gravidade desses riscos, da ação contínua
que se tornava indispensável para que esses riscos não se convertessem
em realidade. Do lado anticatólico, os meios mais eficientes, mais possantes,
mais requintados para formar a opinião pública eram empregados
no sentido de laicizar até suas últimas fibras as nações
do Ocidente.
É possível que nossos meios, muito inferiores aos do adversário,
não tivessem logrado resultado no plano humano, se empregados cabalmente.
Mas Deus não falta a quem faz todo o possível. Pelo contrário,
Ele castiga os que, não confiando principalmente na Providência,
negligenciam empregar os poucos recursos que têm em mãos. Uma
funda era insuficiente, mas Davi com ela abateu Golias. Se tivéssemos
rezado... se tivéssemos agido... se tivéssemos lutado...
Enfim, o passado é o passado. Para que exumá-lo?
É
que está diante do presente, diante de nós, o problema da tolerância.
Trata-se de saber, em mil ocasiões, até que ponto e de que modo
se pode ou se deve tolerar. Como “cesteiro que faz um cesto faz um cento”,
temos todos os motivos para recear que o homem contemporâneo, além
de tolerar o intolerável, muitas vezes tolere com preguiça e
apatia o que deveria ser tolerado com vigilância, firmeza e solércia.
Para evitar tão grande mal, aqui ficam estas reflexões, escritas
num espírito de simpatia ardente, franqueza fraterna e leal cooperação.*
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* Catolicismo, nº 79, julho/1957 (os intertítulos são da
redação).
Páginas: 1 2 3
Veja:
http://www.catolicismo.com.br/
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