O direito do anencéfalo à vida
20/10/2004
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
Deverá o Supremo Tribunal Federal decidir amanhã sobre a admissibilidade
ou não da ADPF (ação de descumprimento de preceito fundamental)
nº 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Saúde, objetivando o direito de seus integrantes abortarem anencéfalos.
Pretendem incluir essa hipótese de "aborto eugênico",
integrando-a no conceito de "aborto terapêutico", este permitido
pelo Código Penal (art. 128, inciso I), cujo texto é o seguinte: "Aborto
necessário -se não há outro meio de salvar a vida da gestante".
O incidente foi provocado pelo procurador-geral da República, Claudio
Fonteles, que entende, corretamente, que a ação não é cabível,
visto que não pretende a confederação demonstrar que um
preceito fundamental esteja sendo ferido, mas sim criar nova hipótese
de antecipação da morte do nascituro, não prevista na
lei penal. Em outras palavras, pretende que não o Congresso Nacional,
mas o STF, nas vestes de legislador positivo, isto é, de Parlamento,
institua por jurisprudência um novo tipo de aborto (eugênico) em
face de o anencéfalo ter prognóstico de tempo de vida, no ventre
materno ou fora dele, menor do que as outras crianças e de sua deficiência
causar tristeza nos pais, sabendo que a criança terá, se nascida,
poucas horas, dias, meses ou anos de vida.
Estou com o eminente procurador-geral da República, que entende não
ser adequado o veículo escolhido. A própria pretensão é também,
a meu ver, inviável -mesmo que lei autorizando o "aborto eugênico" viesse
a ser produzida pelo Congresso- por violentar o "direito à vida",
assegurado na Constituição Federal (art. 5º, caput) e garantido "desde
a concepção" pelo Código Civil (art. 2º) e pelo
tratado sobre direitos fundamentais de que o Brasil é signatário
(art. 4º do Pacto de São José).
A lei 9.882/99, que introduziu a "ação por descumprimento
de preceito fundamental", foi elaborada por comissão de juristas
presidida por Celso Bastos, da qual participei, com Arnoldo Wald, Oscar Corrêa
e Gilmar Mendes. Nossa intenção, ao elaborá-la, foi que
o novo veículo processual viesse a atender às hipóteses
em que houvesse clara violação de um preceito fundamental expresso
na Constituição. Gilmar Mendes, na Comissão, chegou a
sugerir a adoção de uma lista desses preceitos, mas curvou-se à solução,
proposta por Celso Bastos e por mim, de que seria melhor ofertar um nível
maior de generalidade à norma para que não fosse excluído
nenhum preceito fundamental.
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O Código Civil brasileiro,
no
artigo 2º, declara que "a lei
põe
a salvo desde a concepção
os
direitos do nascituro"
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Ora, o que se pretende na ação ajuizada pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Saúde é descumprir o preceito fundamental
do direito à vida (antecipação de morte de anencéfalo),
considerando-o menos importante que a autonomia de vontade da mulher de abortar
e a liberdade de o fazer, visto que a saúde da mulher não corre,
na gravidez do anencéfalo, risco maior do que em qualquer gravidez.
Em outros termos, o direito objetivo do anencéfalo à vida, mesmo
que curta, é afastado pelo aborto (antecipação da morte)
por força da autonomia da vontade e liberdade da mãe, que são
critérios meramente subjetivos.
Aliás, o Código Civil brasileiro, no artigo 2º, declara
que "a lei põe a salvo desde a concepção os direitos
do nascituro". Seria fantasticamente curioso que essa disposição
preservasse todos os direitos menos o direito à vida.
As próprias premissas da ação, que impressionaram o brilhante
ministro Marco Aurélio -quais sejam: a) há risco de vida para
a gestante (a maioria dos médicos diz que é idêntico ao
de qualquer parto); b) a anencefalia seria diagnosticada com absoluta precisão
em 100% dos casos (já tive uma dedicada aluna de direito constitucional
em que a anencefalia foi diagnosticada e a mãe recusou-se a abortá-la,
estando o diagnóstico errado); c) o anencéfalo não resistiria
senão algumas horas (conheço casos em que duraram meses)-, do
ponto de vista fático revelaram-se inconsistentes.
O que a ação pretende é jurisdicizar "o descumprimento
de preceito fundamental" -ou seja, a criação de um novo
tipo de atentado à vida e antecipação da morte, que é o
aborto eugênico do anencéfalo-, razão pela qual, com clareza,
o procurador-geral da República contestou o cabimento desse tipo de
ação, que na hipótese não objetiva "uma interpretação
conforme a Constituição", mas "desconforme", transformando
os ministros do STF em parlamentares não eleitos.
Como disse Sua Excelência, o anencéfalo ou é "ser
humano" ou é "uma coisa". Se não for "uma
coisa", mas um ser humano, deve-se aplicar a ele o mesmo princípio
legal que se aplica aos casos de transplante de órgãos, só admitindo
a retirada de órgãos após a morte -vale dizer, desde que
não haja nenhum sinal de vida cerebral ou vital no ser de quem o órgão
será retirado. Nos anencéfalos, apesar da inexistência
total ou parcial de cérebro, todos os demais órgãos funcionam,
devendo-se esperar, pois, que a morte, em seu devido tempo, aconteça,
e não que se interrompa a vida, como pretende a referida ação,
proposta por servidores da saúde, que, pelo juramento de Hipócrates,
que fazem, deveriam lutar para preservá-la sempre, desde a concepção.
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Ives Gandra da Silva Martins, 69, advogado tributarista, professor emérito
da Universidade Mackenzie e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército, é presidente
do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio
do Estado de São Paulo.
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