Um governo estatisticamente eficiente
18/02/2005
Gilberto Miranda
Estatísticas duvidosas, ou mesmo
falsas, que favorecem a demagogia, são habitualmente destacadas. O
governo faria bem em corrigir tais números. Por que não o faz? A pior
solução: um Ministério das Estatísticas!
Estávamos quatro amigos num carro, saindo de São Paulo para
uma viagem. Parados no primeiro semáforo, observamos sem comentários um
menino fazendo-se de malabarista, com três bolas de tênis lançadas alternativamente
ao ar. No semáforo seguinte, outro menino lidando com quatro bolas deixou
cair uma ao chão, quando tentava a manobra de lançá-la por baixo da perna.
Um dos amigos comentou:
—
Se ele usasse ovos, ia chover dinheiro para ajudá-lo a recompor o instrumento
de trabalho.
No semáforo, menino malabarista
utiliza bastões
|
Mais
adiante, outro menino lançava ao ar um bastão e o aparava com outro, mantendo-o
no ar. Mais um semáforo, e outro menino equilibrava no queixo um bastão
com um disco na ponta. No carro, travou-se então um diálogo:
—
Parece que todos os meninos de São Paulo viraram malabaristas de semáforo.
—
Que exagero! Nós acabamos de passar em frente a um colégio cheio de meninos
que não são malabaristas.
— É claro
que estou falando de meninos pobres.
—
Mesmo assim. Olhe ali aqueles dez garotos jogando futebol. São pobres e
não são malabaristas.
—
Está bem. Quatro em 10 são 40%, o que não é pouco.
—
Você precisa aprender a calcular direito. Tem de somar os quatro com os
dez. No total de quatorze, quatro são 28%. Tem ainda que descontar...
Assim,
de redução em redução, a “estatística” chegou a meros 2%. E ainda a reduziriam
muito, se no resto da viagem a discussão não tomasse o rumo da falsidade
de certas “estatísticas” que circulam por aí. Tentarei resumir.
A “fome” que favorece o governo
Algumas estatísticas
chegaram ao requinte de “precisão” mencionando 53 milhões de
famintos no País
|
O
caso da fome no Brasil é um bom exemplo. Falou-se em 30 milhões, 40 milhões,
50 milhões, e já se chega a um requinte de precisão mencionando 53 milhões.
De onde surgiram esses números? Quem os apurou? Qual o método de pesquisa
utilizado? É de se duvidar que alguém saiba, e enquanto isso a sanfona
espicha e encolhe (principalmente espicha) ao gosto do interessado. Basta
dizer que a FAO reduz esse número a 18,5 milhões, e mesmo isso já é um
evidente exagero. Mais rigorosa do que essas, só aquela “estatística” jocosa:
a metade da população mundial passa fome, e a outra metade faz regime (passando
fome, naturalmente).
Algum
tempo atrás, durante uma viagem de táxi em São Paulo, o motorista, originário
do Ceará, foi indagado se de fato existe fome por lá. “O que que é isso,
doutor!? Pode ser que no Piauí, mas no Ceará não tem disso não”. E
eu acho que se o taxista fosse piauiense, a resposta seria mais ou menos
a mesma, pois parece que a fome está sempre “lá longe”. Aliás, o prefeito
da cidade piauiense de Guaribas, considerada a mais pobre do Brasil, afirmou
que a população é pobre, mas não passa fome. Escolhida para começar o programa Fome
Zero, o que se constata agora é um aumento vertiginoso do número de
antenas parabólicas. Portanto, de fato não havia fome, e o dinheiro distribuído
está sendo utilizado para outras coisas.
Quando o “desemprego” beneficia o governo
A
taxa de desemprego é outro fantasma que perturba a tranqüilidade dos governantes.
Fala-se atualmente em 18%. Para facilitar os cálculos, tomando arbitrariamente
como população economicamente ativa o número redondo de 100 milhões, significa
que 18 milhões estão desempregados, provavelmente passando fome junto com
a família. Um espetáculo desolador.
O próprio presidente
Lula censurou-se por ter afirmado, numa palestra na França, a
existência de 25 milhões de crianças de rua
|
Há outra
estatística — dessas que não se sabe onde, nem como, nem quem — afirmando
que a mão-de-obra informal está próximo de 60%. Informal, no caso, significa
trabalho sem carteira assinada. Sendo informal, não se sabe como isso foi
computado, pois o informal não costuma deixar documentos contabilizáveis.
Não vamos analisar as causas da informalidade, entre as quais seguramente
se incluem encargos trabalhistas acachapantes, impostos extorsivos, desestímulo
aos investimentos. Mas se aceitarmos o dado como verdadeiro, aí teríamos
de corrigir outras coisinhas. Pois os tais 60%, se não têm carteira assinada,
são tecnicamente desempregados (alguns ideólogos demagogos diriam que é trabalhão
escravo), e os 18% deveriam passar a 60%, pelo menos. Número tão evidentemente
absurdo, que é mais cômodo ficar com 18%. Ocorre no entanto que, dos 100
milhões arbitrados acima, os 60 milhões com trabalho informal não são propriamente
desempregados, pois de uma forma ou outra alguém lhes paga pelo trabalho
uma quantia com a qual se mantêm. Então os 18% não devem incidir sobre
100 milhões, e sim sobre algo em torno de 40 milhões, neste caso os 18
milhões de desempregados caem para 7,2 milhões. E assim, num passe de mágica,
10,8 milhões de desempregados conseguem emprego, bem mais do que o prometido
em campanha eleitoral.
Os
números para “justificar” a demagogia
Sobre
crianças de rua, o próprio presidente Lula se censura de ter falado, numa
palestra na França, em 25 milhões, pois o acha absurdo. Há até quem afirme
que o número de crianças de rua é menor que o de ONGs destinadas a cuidar
das crianças de rua. E as ONGs, como é sabido, se mantêm em parte à custa
de renúncia fiscal, ou seja, de impostos não recolhidos, que resultam em
aumento da carga tributária dos que efetivamente pagam impostos.
Cinco milhões de abortos
clandestinos por ano: não existem estatísticas que fundamentem
essa cifra
|
Partidários
da legalização do aborto usaram largamente como argumento 5 milhões de
abortos clandestinos que se fariam por ano no Brasil, e que passariam a
realizar-se com segurança em condições sanitárias adequadas. De onde surgiu
esse número, se a clandestinidade se mantém sem registros passíveis de
apuração estatística? O número evidentemente exagerado circulou sem contestações,
mas há hoje quem o reduz a um terço disso, ou até menos.
Alguns
meses atrás, a imprensa noticiou que no Brasil existem 559.000 crianças
trabalhando como escravas. Alarmante! Apavorante! Deprimente! E a fonte
era a Organização Internacional do Trabalho (OIT), portanto indiscutível.
Acontece que no dia seguinte a mesma imprensa teve de retificar a informação:
os números se referem a crianças executando trabalhos domésticos. Ah, bem...
Alívio geral. Não se sabe que mexidas houve depois de publicada a notícia,
mas de um dia para outro o País ficou livre de meio milhão de crianças
escravas. Uma vitória como essa é obra de vários governos, e aqui tudo
se resolveu em 24 horas. Isso é que é eficiência!
Nunca é demais desconfiar de estatísticas
Como conhecer o número
exato dos trabalhadores informais, se eles não costumam deixar
documentos contabilizáveis?
|
A
essa altura um dos amigos sugeriu que uma atividade muito útil ao governo
seria corrigir estatísticas. Empenhando-se em produzir e divulgar apenas
estatísticas confiáveis, prestaria um grande serviço ao País, melhorando
sensivelmente a imagem do Brasil no exterior. Melhor isso do que apresentar-se
por aí como líder dos povos famintos do mundo. E uma boa equipe de marketing saberia
instrumentalizar essa melhora em favor da imagem do próprio governo, atribuindo-lhe
as notáveis conquistas que aparecerão nos novos índices.
Mas,
tendo em vista a mentalidade centralizadora e totalitária prevalente em
várias áreas do governo, é de se temer que uma idéia assim venha a transformar-se
num Ministério da Estatística, com atribuições supraministeriais, censura
prévia, novas falsificações, etc. Coisa muito diferente do que se deseja.
Churchill afirmou jocosamente
que só confiava nas estatísticas que ele mesmo falsificava...
|
Desconfiar
das estatísticas é uma atitude sensata. De modo irônico e jocoso, Churchill
afirmou que só confiava nas estatísticas que ele mesmo falsificava. O presidente
que aceitasse a sugestão de corrigir estatísticas faria um trabalho muito
melhor que o de Churchill: divulgaria números honestos, ao invés de falsificá-los.
Mas isso teria um grave inconveniente, pois reduziria espaço para uma atividade
indispensável em certos meios: a demagogia.
_________
Nota:
(*) Este artigo já estava redigido e programado quando o IBGE divulgou
os resultados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e confirmou
as suspeitas de que não existiam os tais “famintos” atendidos pelos
programas sociais do governo. Isso tornou extremamente desconfortável
a situação do governo (vide p. 22 desta edição) para prosseguir o programa
Fome Zero e outros da área social. Já não podia também estar à vontade
para tocar a Reforma Agrária, pois há “estatísticas” confirmando que
latifúndios improdutivos no Brasil, atualmente, são apenas os de assentamentos
do MST. Por essas e outras, o governo está propondo a censura prévia
para a divulgação dos dados obtidos, por um organismo idôneo como é o
IBGE
Veja:
http://www.catolicismo.com.br
|