Reforma universitária: tentativa de sovietizar o ensino nas universidades brasileiras
10/06/2005
Leo Daniele
3 – O ANTEPROJETO “FINLANDIZA” O ENSINO PRIVADO
A Reforma Universitária será como uma espécie de polvo, o qual
vai instalar-se no seio das universidades particulares; e com
seus tentáculos, vai asfixiá-las lenta e silenciosamente
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Corriam
os anos 70 quando apareceram nos jornais estas palavras novas: “finlandizar”,
“finlandização”. O que vinha a ser
isto?
A
simpática Finlândia é vizinha da então tida como
superpoderosa União Soviética. Oficialmente, os dois vizinhos eram independentes,
mas na prática uma sombra vermelha cobria toda a Finlândia, de sorte que
ela dependia econômica e politicamente da Rússia comunista, chegando à sujeição.
Apesar de ter bandeira, governo, parlamento, assento na ONU e tudo o mais,
a Finlândia de fato não era independente.[1] Veio daí que,
naquele tempo, quando se queria designar uma situação de independência
apenas formal, mas não real, dizia-se: tal país, tal instituição, está sendo
finlandizado.
Aplicando
a parábola, o anteprojeto de Reforma
Universitária intenta a finlandização das universidades particulares: elas
continuarão formalmente em funcionamento, como exige a Constituição, mas
de fato sua autonomia será fictícia, como fictícia era a independência
da Finlândia. * * *
Distribuição dos alunos do Ensino Superior
Brasil, 2003
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Categoria Matriculas
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PÚBLICA 1.051.655
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Federal 531.664
Estadual 415.569
Municipal 104.452
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PRIVADA 2.428.258
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Particular 1.261.901
Comunitária / confessional / filantrópica 1.166.357
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TOTAL 3.479.913
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http://www.apub.org.br/aduneb.htm.
* * *
O
Prof. Gabriel Mario Rodrigues, Presidente da Associação Brasileira dos
Mantenedores do Ensino Superior, afirma com conhecimento de causa: “É um projeto claramente preconceituoso em relação
ao ensino privado”.(52)
Cláudio de Moura Castro e Simon Schwartzman, em
artigo conjunto, colocam o dedo na chaga: “Pela Constituição, ‘o ensino é livre à iniciativa
privada’, desde que cumpridas as normas gerais existentes. Tal liberdade
colide com o projeto, no qual a educação privada deixa de ser um direito
e passa a ser uma ‘função pública delegada’” (grifo nosso).(53) Ou
seja, na prática dependente do Estado.
É a finlandização que avança
Como
se fará esta operação? Por meio de uma espécie
de polvo, o qual vai instalar-se no seio das universidades particulares
por força da Reforma Universitária; e com seus tentáculos, vai asfixiá-las
lenta e silenciosamente.
Seja-nos
permitido estudar este polvo. Tentáculo
por tentáculo, por assim dizer.
Primeiro
tentáculo: Os conselhos colegiados
Estabelece
o art. 72 do anteprojeto que “as instituições
privadas de educação superior deverão constituir um conselho superior composto
de forma colegiada”.
Como é natural,
os mantenedores — ou seja, os donos, aqueles que financiam as universidades
particulares — deveriam deter 100%
do controle delas. Mas, pelo anteprojeto, eles “não poderão exceder
a 20% da representação total”.(54) Os 80% restantes serão recrutados
entre os “docentes, discentes, funcionários e a comunidade”.(55)
Mas
os proprietários permanecem, como observa o
advogado Ives Gandra Martins, “100% responsáveis no plano tributário, trabalhista,
civil, sempre que o conselho consultivo impuser diretrizes onerosas, com
o respaldo do MEC”.(56)
Em
outros termos, a direção das universidades particulares
passa, na prática, das mãos de seus proprietários para as da comunidade.
Um confisco que ainda não ousa dizer seu nome!
Segundo
tentáculo: outro conselho
A
ação do Conselho Comunitário Social já foi por
nós descrita como uma espécie de soviet. Prejudicial ao sistema
público de ensino superior, sê-lo-á ainda mais ao particular, por este
ser mais indefeso.
Terceiro
tentáculo: pró-reitor eleito
O
art. 73 estabelece que “as universidades e centros universitários privados devem contar com pelo menos um dirigente, no nível
de pró-reitor ou equivalente, escolhido mediante eleição direta pela comunidade”.
Será o “colegiado máximo” da instituição privada
de educação superior que regulamentará o processo de eleição direta do
pró-reitor.
Ora,
o pró-reitor é um auxiliar do reitor. Pergunto
se existe alguém que considere uma boa idéia os secretários de governos
serem escolhidos por eleição direta, roubando ao dirigente o direito de
escolher alguém de sua confiança. Pois é o que se lê no anteprojeto. “Vemos
aí a mão pesada do Estado no intuito de policiar as instituições particulares”, afirma
Souza Neves Filho.(57)
Quarto
tentáculo: plano de desenvolvimento institucional
Outro
instrumento do solapamento da autoridade é o
plano qüinqüenal (Plano de desenvolvimento institucional – PDI) de que
já tratamos. Recordamos que o MST e a CUT ficam assim introduzidos na universidade
privada.
Quinto
tentáculo: finanças — privilégios orçamentários
O
PDI também deverá conter indicações orçamentárias
e programas visando a “promoção igualitária e a inclusão social”.(58)
O
ex-ministro da Educação, Paulo Renato Souza,
observa que o projeto exige das entidades de ensino superior privadas auditoria
de suas contas, que pode ser solicitada a qualquer momento pelo MEC, mas
silencia completamente a respeito da prestação de contas das universidades
públicas, “às quais passa a outorgar autonomia de gestão de recursos”.(59)
Roberto Macedo alude a “privilégios orçamentários conferidos às universidades
federais sem contrapartida de desempenho”.(60)
Completa
o economista Rogério Werneck: “A hostilidade
do projeto ao ensino privado — em todos os níveis — é indisfarçável. Enquanto
se asseguram mais autonomia e pouca cobrança às instituições públicas de
ensino superior, restrições de todo tipo são impostas às instituições privadas.
Em vez de prover ambiente propício ao florescimento do ensino privado de
qualidade, a idéia parece ser entravar o funcionamento das instituições
privadas, exigir mudanças absurdas e populistas na sua governança e mantê-las
sob ameaça permanente de perda de status e credenciamento”.(61)
Registram
os estudiosos Schwartzman e Moura Castro(62) que o anteprojeto tem prevenção quanto ao Ensino Superior Privado, além
de ser “xenófobo em sua oposição à presença de capitais internacionais,
e de estrangeiros”.(63)
Sexto
tentáculo: a “função social”
Como
afirma Pedro Gilberto Gomes, pró-reitor acadêmico
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), “O artigo 6 do anteprojeto
[...] fere dispositivo constitucional sobre a livre iniciativa. Não compete
ao governo estabelecer o que seja responsabilidade social e o que caracteriza
a função social de uma instituição”.(64)
* * *
MUDANÇAS COSMÉTICAS
Já estava
redigida a presente matéria quando o Ministério de Educação e Cultura
deu publicidade a novo anteprojeto de Reforma Universitária, anunciando
que pretende ainda elaborar um terceiro texto em futuro próximo,
talvez em julho. Comparando os dois anteprojetos, percebe-se que
as mudanças foram meramente cosméticas, sobretudo no que toca à forte
politização. Por exemplo, os “conselhos comunitários sociais” são
no novo anteprojeto “conselhos sociais de desenvolvimento” — mera
mudança de rótulo. O MEC também não desiste da questão das cotas
para negros e índios; está agenciando o assunto à parte, em projeto
de lei que tramita em regime de urgência. “As diretrizes do
texto original serão mantidas”, garante o ministro Tarso Genro.
Conseqüência:
não vemos motivos para atenuar nossas críticas, e endossamos a
apreciação do ex-ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, segundo
o qual o novo anteprojeto “é pior que o anterior” (“O Estado
de S. Paulo”, 2-6-05), sobretudo no que diz respeito à sua
politização ideológica.
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* * *
O
aterrorizante pesadelo da “Carrobrás”
Enfim,
resumindo este item, as universidades particulares estão sendo finlandizadas. E
as perspectivas que este fato cria são extremamente preocupantes para o País.
Numa
noite de pesadelo, com as pálpebras cerradas,
imagine que o Governo criou a Carrobrás. Seu carro, prezado leitor,
deverá ser registrado nesse órgão criado para regulamentar o uso dos automóveis,
pois não está sendo respeitada sua “função social”, “estão acontecendo
abusos” e estão ocorrendo desequilíbrios na distribuição dos veículos
na população. Ninguém negará que o carro é seu. Isto não! Mas haverá “apenas”
três pequenas limitações: Você não terá acesso ao volante, a não ser em
20% dos trajetos; haverá um co-piloto; o destino e o rumo serão decididos
coletivamente. Perguntamos: o carro continua plenamente de sua propriedade?
E conseguirá mover-se?
Pois
esta será a situação das universidades particulares,
se for aprovado o anteprojeto.
Érico Veríssimo, de forma espirituosa e expressiva,
afirmou: “Se o pôr-do-sol dependesse do governo ou de alguma estatal, a
execução cairia nas garras de funcionários incompetentes e desonestos,
haveria negociata na compra do material, usariam tintas ordinárias, e o
espetáculo acabaria não sendo o mesmo”. Esta é uma opinião generalizada
entre os brasileiros, e baseia-se na experiência nacional.
Como observa o reitor da UNICAMP, Carlos Henrique
de Brito Cruz, “metade das vagas do ensino superior estão fora das federais,
ou seja, no ensino particular”.(65) Mas as instituições que mantêm
essas vagas correm o risco de acabarem como um carro devidamente registrado
na Carrobrás, ou no pôr-do-sol de Veríssimo.
Conclusão:
“um projeto sem qualidades”
Reunidas
em Brasília, as 140 entidades que representam
os interesses das entidades privadas pediram o engavetamento sumário do
projeto, por cercear a liberdade acadêmica. “Não há como alterar uma
vírgula aqui ou um ponto ali. Não tem como aproveitá-lo”–– afirmou
o presidente da Associação Nacional de Educação Técnica, Fernando Prado.(66)
O
que leva a perguntar: o que quis a esquerda ao propor medida tão deplorável? A resposta parece clara: foi o pendor ideológico,
nivelador e socialista, impaciente para dar cabo de qualquer pólo de excelência,
como é a vocação de cada universidade.
Em
conseqüência, o projeto vem merecendo a rejeição
cabal de quem o examine com imparcialidade. Por exemplo, Rogério L. F.
Werneck afirma tratar-se de “um projeto sem qualidades”. Ele termina
seu artigo com as palavras: “É triste constatar que o projeto é simplesmente
desastroso. Denota pouca reflexão. É produto de visão obtusa do sistema
universitário brasileiro, que parece pressupor que qualquer sandice se
torna respeitável quando rotulada de republicana”.(67)
Um
matutino paulista : “Não há nada que se aproveite”.68
“Em vez de perder tempo com sua reformulação, o mais lógico seria jogá-lo
no lixo e recomeçar a discussão outra vez”.69 Mônica Weinberg também aponta
para a lata de lixo.(70)
Só nos resta formular votos de que este projeto
seja prontamente arquivado e esquecido. Trabalhemos e lutemos nessa direção.
Pois por ele as universidades perdem seu caráter preponderante de centros
de ensino e de excelência, para se tornarem meras ferramentas do nivelamento
social e da luta de classes.
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Notas:
1. Ato Institucional,
in “O Estado de S. Paulo”,
27-4-05.
2. “O Estado de S. Paulo”,
23-1-05.
3. “O Estado de S. Paulo”,
20-12-05.
4. Deforma universitária, in “O Estado de S. Paulo”,
27-1-05.
5. O desmonte
da universidade, “O Estado de S. Paulo”,
24-1-05.
6. Plinio Corrêa de Oliveira, Nobreza e elites tradicionais análogas,
Ed. Civilização, Porto, 1993, p. 105.
7. A revista “Veja” noticiou que “o presidente Lula surgiu
com um boné do Movimento dos Sem Universidade (MSU) durante o lançamento
de um programa de bolsas para estudantes carentes” (“Veja”,
26-1-05).
8. Movimento dos Sem Universidade (MSU): http://www.msu.org.br/, acessado
em 8-3-05. Grifos nossos.
9. Fonte: http://www.msu.org.br/, acessado em 8-3-05.
10. Cfr. “O Globo”,
13-7-04.
11. “O Estado de S. Paulo”,
14-3-05.
12. “Jornal do Brasil”,
24-2-05.
13. “O Estado de S. Paulo”,
12-12-04.
14. “O Estado de S. Paulo”,
12-12-04.
15. “O Estado de S. Paulo”,
12-12-04.
16. “O Estado de S. Paulo”,
16-2-05.
17. “O Estado de S. Paulo”,
29-1-05.
18. Colorblindness
Is Golden – Will
Californians vote to join the human race? American Civil Rights Coalition,
http://www.acrc1.org/ouside.htm.
19. Sempre se
disse que no Brasil o ensino superior público, de melhor
qualidade, dá acesso privilegiado aos filhos das famílias mais
ricas, que podem estudar em escolas secundárias privadas, enquanto
o ensino privado fica para os estudantes mais velhos, com menos recursos,
que não conseguem passar nos vestibulares. Mas dados da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios do IBGE de 2001 provam que “as universidades
públicas são menos elitistas do que se pensava” (Simon
Schwartzman, Ricos e pobres nas universidades, in “O Estado de S. Paulo”,
9-9-03).
20. Colorblindness
Is Golden – Will
Californians vote to join the human race?, American Civil Rights Coalition,
http://www.acrc1.org/ouside.htm
21. Henri Lefèbvre, Le Marxisme, Presses Universitaires Françaises,
21ª ed., Paris, p. 56.
22. Informe de 14-6-1950.
23. http://www.mundonegro.com.br/noticias
24. “O Estado de S. Paulo”,
4-2-05.
25. Art. 18.
26. Art. 20,
parágrafo único.
27. “O Estado de S. Paulo”,
27-1-05.
28. “Jornal do Brasil”,
20-2-05.
29. O desmonte
da universidade, in “O Estado de S. Paulo”, 24-1-05.
30. Idem, “O Estado de S. Paulo”,
24-1-05.
31. “O Globo”,
12-1-05.
32. “O Estado de S. Paulo”,
14-1-05.
33. João Pedro Stedile, “O Liberal” (Belém),
2-4-04.
34. “O Estado de S. Paulo”,
23-1-05.
35. O futuro
do Brasil passa por aqui, in “O Estado de S. Paulo”,
24-2-05.
36. Folha de S. Paulo, 24-2-05.
37. Art. 39.
38. “O Estado de S. Paulo”,
23-1-05.
39. “O Estado de S. Paulo”,
23-1-05.
40. Art. 28, §1o.
41. Art. 28, §4o.
42. “O Estado de S. Paulo”,
23-1-05.
43. “Veja”,
26-1-05.
44. A Constituição segundo Tarso, in “O Globo”,
25-1-05.
45. O grande
salto para trás, "Veja",
26-1-05.
46. O desmonte
da universidade, in “O Estado de S. Paulo”, 24-1-05.
Vários autores, que omitimos por brevidade, falaram de stalinismo.
47. Dualidade
de poderes: em russo, dvoevlastié.
48. Lenine, Oeuvres
Choisies. Ed. En langues étrangères, Moscou,
1948, Tomo 2, pp. 13 ss.
49. Stephane
Courtois et al., El libro negro del comunismo. Crímenes,
terror, represión, Editorial Planeta-Espasa, Madrid-Barcelona, 1998,
p. 1. É o seguinte o rateio por países (em milhões):
URSS, 20; China, 65; Vietnã, 1; Coréia de Norte, 2; Camboja,
2; Europa Oriental, 1; África, 1,7; Afeganistão, 1,5. Na América
Latina, 150.000. No movimento comunista internacional e em partidos comunistas
não situados no poder, uma dezena de milhares de mortos.
50. “O Globo”,
20-12-04.
51. A finlandização culminou com a eleição
sucessiva do presidente Kekkonen, que se manteve no poder durante 27 anos.
52. “O Estado de S. Paulo”,
14-1-05.
53. “O Estado de S. Paulo”,
23-1-05.
54. Artigo 72.
55. Parágrafo único,
inciso I.
56. “O Globo”,
24-2-05.
57. Neves Filho, op. cit.
58. Art. 28, §4o.
59. Paulo Renato
Souza, ex-ministro da Educação, Na contramão
da História, in “O Estado de S. Paulo”, 23-1-05.
60. “O Estado de S. Paulo”,
27-1-05.
61. “O Estado de S. Paulo”,
28-1-05.
62. Claudio de
Moura Castro é economista especialista em educação
e Simon Schwartzman é sociólogo e presidente do Instituto de
Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets).
63. “O Estado de S. Paulo”,
29-1-05.
64. “O Estado de S. Paulo”,
16-3-05.
65. “O Estado de S. Paulo”,
23-1-01.
66. “O Estado de S. Paulo”,
4-2-05.
67. “O Estado de S. Paulo”,
28-1-05.
68. “O Estado de S. Paulo”, Notas e informações,
Reforma delirante, 16-1-05.
69. “O Estado de S. Paulo”,
4-2-05.
70. “Veja”,
26-1-05.
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