A Rússia dos Czares, um sonho estritamente real


01/08/2005

Leo Daniele

No público que visitou a fabulosa exposição A Herança dos Czares, algo novo despontou: uma maior apetência pelo requinte, pelo nobre e elevado, em oposição ao chulo, vulgar e vil

Nos grandes salões do Museu de Arte Brasileira, onde se realizou a exposição A Herança dos Czares, em São Paulo, numeroso público desfilou diante de quadros, trajes, objetos da época dos imperadores da Rússia. Nessa exposição de peças dos museus do Kremlin — organizada pela Fundação Armando Álvares Penteado, entre 27 de abril e 26 de junho último — os jovens predominavam.

Jovens. Czares. Pareceriam duas realidades que não casam. Mas, sim!


À maneira bizantina, Nossa Senhora, no ícone à esquerda, parece estar fora do tempo e da matéria. Mas, se se prestar atenção no relacionamento entre Ela e o Menino, nota-se todo o calor de uma relação mãe-filho, retratado esplendidamente. Jesus literalmente se lançou em seu seio de Mãe: veja-se sua mão e seus pezinhos. E Maria, com sua cabeça inclinada e encostada na do Deus-Menino, segurando–O com dedicação e cuidado, tem ao mesmo tempo uma atitude de grande ternura e profunda veneração. Esta é uma cópia ilustre do famoso ícone de Vladimir, procedente do Império Bizantino, e que foi trazido à Rússia no século XI. Trata-se de imagem inteiramente diversa de, por exemplo, uma Madonna de Rafael, pois é uma síntese de duas qualidades aparentemente opostas: o sagrado e o materno.


Atrás da chamada Ponte de Pedra, o artista (F. Ya. Alexeev, Séc. XIX) retratou o majestoso panorama do Kremlin, altaneiro conjunto arquitetônico, que evoca com vivacidade aspectos típicos da antiga Rússia. “Kreml” significa cidade fortificada. As muralhas magníficas são, de espaço em espaço, reforçadas por torres e torreões. Atrás delas vêem-se belos palácios, e ao alto uma catedral, cuja agulha graciosa se ergue elegante para o céu. Em seu cimo, uma cúpula bizantina tão leve que parece prestes a alçar vôo. O Kremlin foi a sede do governo, desde Ivan o Terrível até Pedro o Grande. O lindo azul das águas do rio, as suas barcas e as casas particulares ribeirinhas completam o quadro, mostrando certo entrosamento entre a monumentalidade do palácio, o povinho miúdo e a burguesia.

O fato é tão mais significativo quanto os objetos expostos nos falam de uma época que foi arrasada pelo comunismo soviético, e portanto adquirem um caráter anticomunista implícito. Eles nos falam de uma Rússia de legenda e de sonho. É a Rússia imperial que está ali representada, contrária à de Stalin, Kruschev ou Gorbachev.

Alguém poderia perguntar, de outro lado, se a Rússia ali representada não era a do cisma, a Rússia que se afastou de Roma e do Papa. Em termos. É sabido que a igreja cismática russa, ao separar-se da Santa Igreja, conservou consigo um enorme cabedal de costumes, objetos e devoções que são próprias da Igreja Católica e não do cisma. Como um filho desnaturado que abandona injustamente os pais, leva entretanto consigo toda uma herança genética, hábitos, modos de ser e até roupas que são próprias da família e não da revolta em que se meteu. Olhando-o, mesmo na sua indigência moral, podem-se ver muitas e importantes características da família.

Por isso, falando da Rússia anterior ao século XVIII, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira (em 13-5-1992) a comparava à Idade Média sacral: “A Rússia de Moscou, czarista, era tão sacral quanto o Estado medieval. Sacral de uma religião falsa, mas sacral. Era tão pundonorosa nos trajes, etc., quanto a Europa medieval; era tão séria, as diversões tão pouco saracoteadas, tão pouco hollywoodianas quanto possível, paredes grossas, vitrais impedindo que a luz natural entrasse dentro da sala; trajes pesadíssimos, explicavam-se em parte pelo clima, mas em parte por uma mentalidade”.

*     *     *


A palavra boiardo é inseparável do conceito de Rússia antiga: Rússia autêntica de Moscou, e não a ocidentalizada de Saint Petersbourg. Esses antigos senhores feudais foram perseguidos e extintos por Pedro o Grande, que se empenhara no afrancesamento da nação e no fortalecimento do poder central. O traje amplo, pesado, sério, aristocrático, de certa rudeza cheia de força, grandeza e inspiração, lembra a saga dos boiardos. No peito, a águia bicéfala do Império.


Fazia parte do guarda-roupa do infortunado Czar Pedro II — coroado em 1727 com apenas 12 anos, morto de varíola aos 14 — o magnífico traje cerimonial, constituído por colete de seda esplendidamente bordado em prata e casaco de lã azul.

É curioso: naqueles salões da exposição conversava-se pouco, havia um clima de recolhimento como que religioso. Em nenhum museu vi algo semelhante. Perguntei a um guia o que o numeroso público estava achando.

— Ah! muito ouro!

Julguei que poderia ser uma crítica tipo esquerdista, e perguntei:

— Mas então não estão gostando?

— Gostando? Mas eles estão adorando!

            ?Realmente, dava a impressão de que sobretudo os mais moços estavam apreciando, e tinham o ar de quem acabava de descobrir algo que muito lhes falava à alma.

Para o comprovar, aproximei-me de uma roda. Outro guia tinha terminado o percurso completo das salas e estava dizendo algo para encerrar. Diante dele, uns cinco ou seis rapazes e moças. Ele diz:

— Até aqui vocês perguntaram e eu respondi. Agora vou fazer eu uma pergunta. O que vocês gostariam de receber como herança?

Herança? Uma pergunta sem dúvida singular, como que caída de pára-quedas! É de se perguntar onde ele queria chegar. Mas os rapazes e moças responderam com muito boa vontade. Só guardei as duas primeiras respostas:

— Um sobrenome. (!)

— Ordem. Um mundo com ordem.

O guia disse, ao final, que não esperava aquelas réplicas. E, francamente, eu também não. Pois, de acordo com os modelos até há pouco dominantes, a resposta seria: dinheiro, carreira, prazeres – ou congêneres.

Prestando bem atenção no que estava se passando, as respostas não eram tão surpreendentes. Pois os jovens em visita à exposição estavam realmente muito interessados, alguns admirados, outros literalmente maravilhados.


Foi o Czar Alexandre III quem pela primeira vez ofereceu um ovo de Páscoa Fabergé à czarina sua esposa, em 1885, inaugurando um costume. Elaborado pelo joalheiro francês Peter Carl Fabergé, é uma jóia em ouro, prata, diamantes e esmalte, decorada com águias bicéfalas, coroas reais e as miniaturas dos czares da dinastia Romanov. Foram oferecidos 56 ovos, desde esse ano até 1917. Na foto, vemos o ovo de Páscoa do tricentenário da dinastia. A jóia tem menos de oito centímetros de altura, mas contém minúsculas aquarelas dos 18 czares da Casa Romanov, pintadas sobre esmalte branco. As miniaturas foram reproduzidas em tamanho grande pelo museu; podem ser apreciadas com detalhes, e são maravilhosas.

Aquelas imagens deflagravam neles lembranças inexprimíveis e uma espécie de saudade. Mas como poderiam ter lembranças e saudade de realidades que não viram? Esses jovens, como autênticos representantes da “geração milênio”, distavam 88 anos do fim do czarismo na Rússia, possivelmente pouco tinham lido a respeito e estavam orientados para gostar de coisas completamente diversas daquelas.

Em seu subconsciente, pareciam cansados do mundo moderno. Das agressões psicológicas — e hoje em dia ninguém pode dizer que está livre das físicas também — da feiúra, da fumaça, do barulho, das greves, da corrupção, das invasões, da falta de sentido, etc. Eles tinham um vago desejo do contrário, que não sabiam exprimir. De repente, vêem-se num ambiente de beleza, nobreza, compostura, elevação. Conseqüência: para usar a palavra imprópria do guia, “adoraram”.


Os ovos tradicionalmente continham uma surpresa, que se descobria abrindo a tampa. No ovo que foi exposto havia um globo giratório imitando o mar, com a Terra trabalhada em ouro de diversas cores

No fundo de seu mundo interior havia o Belo, o Bom e o Verdadeiro. Inesperadamente, vêem estes valores no mundo exterior. Há um encontro, uma espécie de “click”.

“Então, outra civilização é viável?”, pareciam perguntar. E chegavam à conclusão de que um universo maravilhoso seria possível. Por quê? Por uma razão muito simples: já foi possível, e as provas estão ali diante de seus olhos. Eles as podem apalpar.

 Se foi possível, é porque ainda é possível.

O mundo dos czares não é como, por exemplo, a Disneylândia, que tem aspectos interessantes, mas é algo artificial, fabricado. Aqui não, tudo é real.


Neste quadro (Autor anônimo, Rússia, Séc. XVIII-XIX) a fisionomia de Catarina, a Grande, exprime o paradoxo de ser uma “déspota esclarecida” –– portanto, uma precursora da Revolução Francesa –– e, ao mesmo tempo, o senhorio próprio a uma soberana. Ela adotava todos os símbolos monárquicos. Envergando um “vestido russo”, vê-se em seu manto imperial um broche de diamantes; no peito, uma corrente de diamantes e a cruz da Ordem de Santo André Apóstolo. Com sua mão esquerda, faz um gesto elegante, aristocrático; em sua mão direita, o cetro com o famoso diamante Orlov; sobre a almofada, o globo e a grande coroa imperial de coroação. Trata-se de uma pessoa cheia de vitalidade. Mas, ao contrário da imperatriz católica Maria Teresa da Áustria, em seu olhar não se vê maternalidade nem afeição.

Foi um mundo maravilhoso, nobre e mais sério que o atual. A seriedade é um elemento bastante presente nessa mostra. O esmero e o requinte na execução dos objetos — de uma coroa ao estribo de uma sela — desvendam um mundo em que cada coisa tem seu sentido, seu valor próprio. E em que, portanto, tudo é sério.

?Uma famosa jóia, um dos ovos de Páscoa de Fabergé, está exposta numa sala especial. Nele todos os czares da dinastia Romanov estão retratados em miniatura, e suas figuras se vêem, nas paredes, em tamanho grande. É algo de fabuloso! Que impressão de força se desprende daquelas fisionomias! Que sensação de sacralidade deflui de seus trajes!


Para manter o espírito de finura e compostura, mesmo em circunstâncias adversas como são as viagens, a aristocracia russa levava consigo, nos deslocamentos, conjuntos de prata como o da foto, com bandeja, bule, açucareiro, cafeteira, leiteira, pinça, coador e colheres de chá. Por detrás de certa influência ocidental, o espírito russo se faz ver com força e de forma magnífica (Moscou, 1873).

Muito se poderia objetar, examinando suas biografias. Mas quanta personalidade eles têm! Que desolação se sente, comparando com o desbotamento de alma das notabilidades de nosso tempo! Dir-se-ia que um demônio passou por aqui e embaçou tudo.

?Todos os objetos da exposição, dos paramentos litúrgicos aos trajes de caçada, transmitem um clima de seriedade. Mas é uma seriedade temperada pela fantasia, pois o ambiente é de sonho. E portanto de pensamento, porque, como afirma Plinio Corrêa de Oliveira, “exprimir em termos de arte um sonho é uma das mais altas formas de pensar” (Catolicismo, junho, 1994, nº 522).

Ao charme dessa seriedade soma-se a superioridade do mistério, sempre presente na cultura do Oriente. Um clima de lenda cobre o conjunto como uma nuvem dourada. Uma lenda que não é pura imaginação, mas cuja realidade histórica ninguém pode discutir.

A certos intelectuais empenhados em conhecer a favela da Rocinha ou a tribo dos pataxós — o que teoricamente é meritório —, sugeriria virem a esta exposição para assistir a um fenômeno sociológico mais digno de nota: o espetáculo de uma juventude sedenta de ordem, beleza, calma e luxo.

Veja:
http://www.catolicismo.com.br/

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