Jacques Cathelineau “O santo do Anjou”


08/11/2005

Nicolas Paris

Entre os que lutaram contra a Revolução Francesa, a Divina Providência suscitou um grande herói. Sua epopéia marcou a História e ecoa até nossos dias, apesar de não ser focalizado pelos holofotes revolucionários.

A noite caía sobre Pin-en-Mauges (a aldeia Pinheiro nos Mauges) naquele 12 de março de 1793, uma terça-feira, quando uma agitação inusitada veio perturbar a quietude vespertina dessa pequena aldeia de camponeses da região do Anjou.(1) Situada no planalto que desce rumo ao rio Loire, compunha-se de pequenas casas agrupadas em torno da praça da igreja. A casa de Jacques Cathelineau, modesto vendedor ambulante, ficava a dois passos dali, do outro lado da estrada principal.

Na praça, homens discutiam com calor os acontecimentos do dia, e ouviam com atenção o relato de Jean Blon, primo de Cathelineau. Sem dúvida, Cathelineau era o homem mais considerado da paróquia.

Os republicanos vinham multiplicando os atos de tirania contra a Religião e a monarquia. Os Mauges sofreram particularmente a perseguição religiosa, que baniu, prendeu, deportou e condenou à morte os padres que se recusaram a prestar juramento à constituição civil do clero, imposta pela Revolução Francesa, e que colocava a autoridade civil acima da religiosa. As igrejas foram fechadas, os padres fiéis a Roma expulsos pela força pública. O soberano legítimo, Luís XVI, rei ungido pela Igreja, fora guilhotinado em 21 de janeiro daquele ano.

Diante da ameaça de invasão que rondava as fronteiras da França, as autoridades republicanas de Paris decretaram o recrutamento de 300.000 homens. Decidiu-se que o alistamento de jovens para o Exército seria feito por meio de sorteio, uma espécie de loteria. Na região dos Mauges o sorteio foi marcado para o dia 12 de março, e esse era o assunto que Jean Blon expunha à população.

Firme resolução de resistir aos revolucionários


Detalhe do Massacre do Moinho da Rainha. Inúmeros católicos foram mortos pelos soldados republicanos

A população local — assinalada pela prática fervorosa da Religião católica, graças ao estímulo dos sermões e ao bom exemplo de seus párocos, como também dos missionários de uma congregação fundada por São Luís Maria Grignion de Montfort — via tudo aquilo como uma agressão à sua fé. O descontentamento rugia havia vários meses, mas sem desencadear ainda uma ação de conjunto. Foi a recusa de servir à república anti-religiosa e persecutória, e a indignação de se verem obrigados a dar a vida por ela, que desencadeou a epopéia vendeana.

Nas vilas mais importantes como Saint-Florent-le-Vieil, próximo do Pin, os jovens que se apresentaram para o recrutamento apoderaram-se dos canhões que apontavam contra eles para intimidá-los, e puseram os republicanos a correr. No fim do dia, todos voltaram às suas paróquias trazendo a notícia da insurreição, que começara espontaneamente. Nem sequer tinham chefes, só no dia seguinte iriam pedir a alguns nobres que não haviam deixado o país, e que eles sabiam ter alguma experiência militar, para comandá-los.

Pelo mesmo motivo, os insurgentes da véspera enviaram um emissário a Jacques Cathelineau, pedindo-lhe que conduzisse sua paróquia ao combate. Após madura reflexão, ele tomou a decisão na manhã de 13 de março, reuniu os voluntários, abriu à força a igreja fechada pelas autoridades revolucionárias, rezou e depois pronunciou uma breve exortação para encorajar seus companheiros, os quais contavam como armas apenas algumas foices: “Se for preciso morrer, ao menos que seja combatendo os inimigos de Deus e nossos! Marchemos já sobre Jallais: a vitória nos dará armas e munições”.

O homem que, de certo modo, começou uma cruzada


Conselho de Guerra dos líderes da Vendéia planejando a luta contra-revolucionária

Cathelineau nasceu a 5 janeiro de 1759 na mesma aldeia do Pin, segundo filho de uma família de cinco. Seu pai era talhador de pedras.

O pároco notou logo a piedade, a inteligência e os dons daquele jovem catequista, e certamente pensou que ele poderia tornar-se sacerdote. Confiou-o, de 1770 a 1776, ao Pe. Marchais, vigário da paróquia vizinha, La Chapelle-du-Genêt. Esse santo homem completou a instrução do jovem Jacques, e sobretudo revigorou-lhe o espírito de fé e a confiança na Providência. Seu exemplo de devotamento e suas palavras falam de uma visão do mundo centrada na ação constante de Deus na vida dos homens. Ao contrário de numerosos eclesiásticos da época, o Pe. Marchais via os perigos da impiedade que se difundia no país através das idéias dos filósofos iluministas, como Rousseau, Voltaire e outros do gênero. E alertou seus fiéis a esse respeito.

Mas Jacques Cathelineau não era chamado ao sacerdócio. Voltou à sua aldeia e foi trabalhar com seu pai. Casou-se em 1777 com Louise Godin e teve 10 filhos, dos quais cinco morreram na infância.(2) Exerceu a humilde profissão de vendedor ambulante. Deslocando-se de vila em vila, freqüentando feiras e mercados, conheceu muita gente e todos louvavam sua honestidade.

Por ocasião dos acontecimentos que relatamos, Cathelineau tinha 34 anos. De estatura elevada, sua voz forte e profunda impressionava. Era apreciado por sua eloqüência, e sobretudo por sua piedade e sabedoria, o que levou muitos a apelarem a ele para resolver litígios e pedir-lhe conselhos. O Pe. Cantiteau, cura da aldeia do Pin a partir de 1785, testemunhará a retidão de seu julgamento e a exemplaridade de sua vida. O nome de Cathelineau aparece muitas vezes nos registros da paróquia, da qual se tornou síndico.(3)

Cathelineau comanda as primeiras reações


Símbolo adotado pelas forças contra-revolucionárias

Durante o verão de 1791 e o ano de 1792, a perseguição levada a cabo pelos republicanos aumentou e as peregrinações dos camponeses aos santuários próximos se multiplicaram. É Jacques quem dirige as peregrinações que vão implorar a ajuda de Nossa Senhora. Ante multidões que acorriam em procissão, rezando o rosário e cantando hinos religiosos, os republicanos mandaram destruir a capela de Nossa Senhora da Caridade.

O deputado da Vendéia, La Révellière-Lépeaux, protetor da falsa religião deísta propagada pela Revolução Francesa, compareceu no fim de março de 1792 para derrubar o carvalho sobre o qual a voz popular afirmava ter aparecido a Santíssima Virgem. A indignação das populações cresceu sem cessar, diante das vexações a elas impostas pelos revolucionários.

Durante todo esse período, Cathelineau julgou que a hora de agir ainda não chegara. Aos que o solicitavam nesse sentido, respondia que deviam rezar mais.

Chegada a hora da Providência, Jacques Cathelineau comandou o ataque a Jallais em 13 de março de 1793. A praça, defendida por algumas dezenas de guardas-nacionais munidos de um canhão, foi tomada de assalto. Sem perder sua calma, Cathelineau relançou a operação para a tomada de Chemillé naquele mesmo dia. Esta segunda praça, apesar de mais bem defendida, foi ocupada à noite. Ligeiramente ferido por um golpe de sabre na cabeça, Cathelineau mostrou sua bravura e capacidade de comando. Compreendeu também que era preciso explorar o sucesso e não permitir que depois o desânimo viesse a vencer seus homens, então tomados de um entusiasmo transbordante, mas frágil.

O ataque a Cholet, capital dos Mauges defendida por uma forte guarnição, deu-se com sucesso no dia 14, graças à ajuda de homens que acorreram de toda a região, parte dos quais sob as ordens de Stofflet, o enérgico guarda-caça da família Colbert, vindo de Maulévrier.

No dia 15 foi tomada Vihiers, na direção de Saumur. Em ação simultânea, o marquês de Bonchamps e d’Elbée tomavam as localidades em volta de Saint-Florent. O reagrupamento das forças ocorreu no dia 21, para atacar a praça republicana de Chalonnes-sur-Loire, que caiu no dia 22.

A formação de um “exército católico”

Durante todos esses combates, Cathelineau impôs a disciplina, deu ao mesmo tempo exemplo de coragem e de profunda piedade, de calma e de clarividência. Despontou como o chefe natural de todo um território. Foi contudo atingido na pessoa de seu irmão mais jovem, Joseph, capturado pelos republicanos e guilhotinado no dia 27.

Em seguida o exército católico sofreu reveses diante da contra-ofensiva republicana que se desenvolveu nos Mauges. Depois dos primeiros êxitos, com efeito, muitos homens voltaram despreocupadamente para suas casas, a fim de cuidar de seus campos. A situação militar só se equilibrou com a entrada dos homens de La Rochejaquelein, vindos da região de Poitiers, cujo levante ocorreu a partir de 13 de abril.

A junção dessas duas forças deu origem ao “grande exército católico e realista”. As localidades tomadas pelos “azuis”(4) foram todas reconquistadas em uma série de vitórias que culminaram com a tomada de Thouars, em 5 de maio, por um exército de católicos que realizou o assalto da cidade cantando hinos.

A proclamação publicada no dia 11 pelos chefes do exército enunciam claramente os fins da insurreição: “Só pegamos em armas para defender a religião de nossos pais e devolver ao nosso augusto e legítimo soberano Luís XVII(5) o brilho e a solidez de seu trono e de sua coroa; não tendo outro objetivo que não seja promover o bem geral”. Nessa proclamação figura a assinatura de Cathelineau ao lado das firmas dos outros generais.

Personificação do líder católico-monarquista


Bandeira do Rei Luís XVII portada por um soldado vendeano

Entretanto, o fracasso na tentativa de tomar a cidade de Fontenay-le-Comte(6) no dia 16 representou rude golpe no moral do exército católico. Cathelineau interpretou-o como um castigo da Providência, pela pilhagem da vila de La Châtaigneraie no dia 13. Mas foi ele quem reconfortou os chefes e a tropa. Com seu estímulo, aquela praça foi finalmente tomada no dia 24 de maio. Cathelineau tornou-se então uma das maiores figuras da insurreição.

No começo de junho, o exército católico marchou rumo a Saumur, às margens do Loire.  Mais de 10 mil homens defenderam a cidade, e chegaram ainda mais reforços. Não obstante a resistência feroz dos republicanos, ela foi conquistada brilhantemente pelos católicos realistas em 10 de junho. Era o caminho de Paris, e a Revolução compreendeu o perigo que a ameaçava.

No dia 12, por iniciativa do marquês de Lescure, um conselho de guerra se reuniu em Saumur para eleger um general chefe. Sem que ele se apresentasse, ou mesmo suspeitasse, Cathelineau foi aclamado como tal. A escolha recaiu sobre ele em razão de suas capacidades de suscitar o entusiasmo do homens e de saber comandá-los no ardor da batalha. Mas talvez se pudesse dizer que foi sobretudo por causa da alta imagem da fé, que ele encarnava. Nesse momento ele personificava a insurreição católica e monarquista.

Duro revés para os contra-revolucionários


Mausoléu de Cathelineau em Pin-en Mauges

Com a tomada de Saumur, a estrada de Paris estava aberta. Napoleão o testemunhará mais tarde, afirmando que os vendeanos poderiam então ter derrubado a Revolução. Com La Rochejaquelein, Cathelineau teria certamente querido tentar esse golpe de audácia, mas as opiniões contrárias prevaleceram no conselho, a favor de uma ofensiva contra Nantes.

Após ter tomado Angers sem combate em 20 de junho, o exército dirigiu-se rumo a Nantes, atacando na manhã do dia 29. À frente de um destacamento, Cathelineau encontrou uma falha no dispositivo de defesa do inimigo e penetrou na cidade. A um palmo da vitória, ele foi gravemente atingido por um atirador emboscado numa casa. Seus homens recuaram, levando-o, e o ataque fracassou. Transportado a Saint-Florent, ele morreu lúcido no dia 14 de julho. Deu diretrizes até o fim, enquanto se preparava serenamente para a morte, como testemunha o Pe. Cantiteau, que veio assisti-lo. Seu corpo foi enterrado secretamente, para evitar as profanações que os azuis estavam acostumados a praticar. Durante algum tempo, tentar-se-á mesmo dissimular sua morte, a fim de evitar o desânimo dos combatentes.

Jacques Cathelineau é hoje conhecido por ter levado à frente uma epopéia que não durou mais de três meses. Além dos seus surpreendentes dons de chefia e de sua clarividência na ação, sua figura moral caracterizava-se por uma visão sobrenatural dos acontecimentos. Sua confiança em Deus, sua calma ativa, não se desmentiam em nenhum momento. Ao partir para a guerra, em 13 de março, sua esposa tentou retê-lo, lembrando os riscos que correriam seus filhos. Ele respondeu: “Tenha confiança. Deus, que quer que eu combata, cuidará deles”.

Sem ilusões quanto aos perigos que o ameaçavam, lançou-se na ação porque estava convencido de que a Providência assim o desejava. Aceitou de antemão o martírio, mas estava igualmente convencido de que seu dever religioso era lutar contra a Revolução para vencer. Simbolizou e personificou a reação de um povo inteiro, que se reconheceu nele porque levantou-se sem nenhuma ambição pessoal contra um Estado ímpio e opressor da fé.

Não é inútil ressaltar como sua família seguiu seu exemplo: seu irmão Pierre prosseguiu no combate até a morte, em 1794. Seu filho Jacques tomou armas contra Napoleão ao lado de Auguste de la Rochejaquelein, em 1815, e foi enobrecido em 1816 pelo Rei Luís XVIII. Surpreendido sem armas, foi assassinado em 1832, quando tentava secundar a tentativa legitimista da Duquesa de Berry, nora do Rei Carlos X.

 

* * *

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Notas:

1. O Anjou é a região onde se localiza Angers, cidade importante já naquela época, situada a 40 km a noroeste da aldeia. Os Mauges, uma sub-região do Anjou, ocupam o planalto ao sul do rio Loire, entre os pequenos rios Sèvre, Hyrome e Layon.

2. A mortalidade infantil era muito elevada na época.

3. Responsável da administração civil da paróquia.

4. Nome dado aos revolucionários pelos vendeanos, devido à cor dominante dos uniformes republicanos.

5. Trata-se do Delfim, filho de Luís XVI e da Rainha Maria-Antonieta, guilhotinados pela Revolução.

6. Os revolucionários mudaram seu nome para Fontenay-le-Peuple.

Veja:
http://www.catolicismo.com.br/

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