Conto de Natal: Uma alma aflita
19/12/2005
Benoît Bemelmans
A angustia
de
uma pessoa que, com o
passar dos anos, foi esquecendo os preceitos
divinos, mas na recordação das alegrias próprias à época
natalina foi movida pela graça e obteve do Salvador, por intercessão
da Santíssima Virgem, o perdão pela vida desregrada.
m
seu corpo dolorido, também a alma estava triste e ferida.
Mais que o frio da noite, mais que as dores nos membros, de tanto errar pela
cidade, ela sofria de um mal latente e profundo.
Naquela vigília
de Natal, a alma atormentada vagueava pelas ruas procurando ignorar a causa
de seu
sofrimento.
Há muito tempo ela havia se acomodado na indiferença. A última
vez que se havia ajoelhado num confessionário para receber o perdão
de suas faltas, quando foi?
Não se creia que se trate de um grande criminoso, não. Era uma
pessoa comum, que levava sua vidinha. Apenas se esquecera da Lei de Deus, que
substituíra por seu bel prazer, pelo egoísmo e por toda espécie
de baixezas que passavam por sua alma, como o ruído de folhas mortas
levadas pelo turbilhão de um sopro maligno.
Era um homem? Uma mulher?
Pouco importa. Era uma
alma mergulhada na tristeza, fruto inevitável
e amargo da má consciência ao ver, sem mesmo querer confessar
a si mesma, tudo o que perdeu ao rejeitar a amizade de Deus.
Há tantas almas dessas pelo mundo neopagão de hoje, endurecidas
pelo hábito do ceticismo!
O dia inteiro ela se havia
agitado para concluir os últimos preparativos
de Natal. Pois, apesar do abandono de sua vida espiritual, essa alma se lembrava
ainda da alegria e da inocência de seus primeiros natais. Tinha sede
de uma felicidade que parecia escapar-lhe cada vez mais, e, na medida do possível,
tentava recriar em torno de si o ambiente dos natais de sua infância.
Era bastante dotada para isso, e conseguia, apesar de tudo, reunir ainda alguns
amigos e familiares em torno de um pinheiro bem decorado, de um pequeno presépio
e de uma ceia para uma festa que não fosse muito melancólica.
Os anos haviam corrido,
mas a alma imortal conservava a marca da infância
inocente que ela havia tido.
Aliás, se o leitor prestar atenção nos adultos, verá que
nas almas deles a criança nunca está muito longe, mesmo quando
os pecados as tenham obscurecido. Essa criança acabará por despertar
um dia?
*
* *
A árvore
brilhava havia vários dias com todas as suas bolinhas
coloridas, e o presépio acima da lareira só aguardava a noite
santa em que receberia o Menino Jesus.
Toda noite a alma se rejubilava
ao fazer avançar seu carneirinho de
barro. Começou também a fazer a oração que sua
mãe lhe havia ensinado a rezar diante do presépio. O carneirinho
partira do alto da colina de papel, e a alma se perguntava se ele chegaria
a tempo junto à manjedoura, para a noite de Natal.
Seu carneiro lhe recordava
que também ela devia apresentar-se junto à gruta,
toda de branco, para dirigir uma fervorosa prece ao Divino Infante por meio
de Nossa Senhora. Era o melhor presente que ela poderia oferecer ao Menino
Jesus, que veio para nos salvar.
— Salvar-me de quê? –– perguntou-se
ela.
Salvá-la do pecado, abrir-lhe as portas do Céu, torná-la
filha de Deus, resgatá-la das garras do demônio, morrendo por
ela na Cruz.
No catecismo, a alma havia
compreendido muito bem que, por causa do pecado cometido por nossos primeiros
pais que
desobedeceram a Deus, a humanidade inteira,
que deles procedeu, se tornara pecadora, inclinada ao mal, privada da vida
divina, da vida da graça. Foi para nos dar essa vida, livrar-nos da
escravidão do pecado, que Jesus veio ao mundo e morreu na Cruz.
Deitado na manjedoura,
entre o boi e o asno, o Menino Jesus abre seus bracinhos para nos acolher...
mas Ele
já os estende em forma de cruz!
Quando fizera sua primeira
comunhão, o Natal tornara-se ainda mais
belo. Como era luminosa a missa de meia-noite na igreja paroquial! Os círios
brilhavam sobre o altar, os cânticos natalinos subiam ao céu com
as nuvens de incenso... Na hora da comunhão, a alma recebia Jesus, seu
Salvador. Ela O adorava como os pastores haviam feito na gruta de Belém,
oferecendo-se a Ele e sendo inundada de felicidade por seu amor misericordioso.
Ela tinha se preparado
cuidadosamente para esse encontro maravilhoso. Vários
dias antes, tinha ido confessar suas faltas humildemente, com verdadeira contrição,
a um velho sacerdote que sempre a encorajava com bondade a perseverar no caminho
do bem.
— Reze também por mim. Dia virá em que não me encontrarás
mais aqui para te aconselhar.
A alma saía do confessionário na maior leveza, cheia da tranqüila
felicidade de se ver na amizade de Deus.
E todas as noites recitava
aquela prece ensinada por sua mãe diante
do presépio, em preparação ao Natal. Era uma bela oração
dirigida à Virgem Santíssima, que tudo nos obtém de seu
divino Filho.
* * *
— Como era mesmo essa oração? –– perguntava-se
a alma atormentada.
Do fundo dos anos de indiferença, as palavras esquecidas há tanto
tempo foram pouco a pouco emergindo em sua memória:
Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer
que algum daqueles que tenha recorrido à vossa proteção,
implorado vossa assistência, reclamado vosso socorro, fosse por Vós
desamparado. Animado eu, pois, com igual confiança, a Vós, ó Virgem
entre todas singular, como a Mãe recorro, de Vós me valho, e
gemendo sob o peso de meus pecados, me prostro a vossos pés. Não
desprezeis as minhas súplicas, ó Mãe do Verbo de Deus
humanado, mas dignai-vos de as ouvir propícia e de me alcançar
o que Vos rogo. Assim seja.
Num primeiro movimento
de orgulho amargo, a alma se perguntou: Serei eu a primeira a dizer que Nossa
Senhora
não veio em meu socorro? Depois percebeu
claramente que não havia se dado ao trabalho de pedir uma só vez
esse socorro...
E caminhando por ruas vazias
e frias, ela repetia as palavras da oração
de sua infância: Gemendo sob o peso de meus pecados [...] nunca se ouviu
dizer que algum daqueles que tenha recorrido à vossa proteção
[...] fosse por Vós desamparado! Animado eu, pois, com igual confiança
[...] como a Mãe recorro, de Vós me valho...Uma
grande dor invadiu então essa alma atormentada, ao tomar consciência
do lamentável estado em que se encontrava. Do mais fundo de seu ser,
subia-lhe um desejo de reconquistar a amizade de Deus e os perfumes primaveris
de sua vida espiritual, de restaurar a inocência perdida.
— Será ainda possível? –– perguntava-se
ela.
— Nunca se ouviu dizer... –– respondia-lhe
uma voz interior.
Movida pela graça,
repetiu ainda, com toda sinceridade, as palavras do Lembrai-Vos e pediu a
Nossa Senhora
que viesse em seu socorro.
— Vamos ver o que sucederá –– pensou
ela com uma ponta de incredulidade. E virou a esquina.
* * *
A luz interior
da igreja iluminava os vitrais. A porta estava aberta. Hesitante e surpresa,
entrou. Estava para começar a vigília de Natal.
Pela nave lateral, avançou até o altar de Nossa Senhora. Uma
melodia natalina partiu do órgão. A alma desmanchou-se em prantos.
Depois de tantos anos de secura no egoísmo, ela se afogava em soluços
de arrependimento. As lágrimas escorriam-lhe pela face em abundância,
e seu tronco sacudia ao ritmo convulsivo do pranto em soluços, como
o de uma criança...
Lá havia um padre para ouvir confissões. E este não foi
o menor dos milagres, para os tempos em que vivemos. A alma foi acusar-se como
pôde, um tanto confusamente, de sua triste vida afastada de Deus. E recebeu
a absolvição de suas faltas.
* * *
Deixo
ao leitor o cuidado de pensar na alegria que, naquela noite, causou ao Coração
de Jesus Infante a volta ao rebanho de sua pequena ovelha transviada.
O Menino Jesus veio sobretudo
para os pecadores. Não recusa jamais
o seu perdão. Acolhe com bondade e misericórdia toda humilde
contrição. Ontem, hoje, sempre, Jesus Cristo é a solução
para o mundo, que afunda na noite do neopaganismo.
No maior drama de nossa
vida, recorramos com confiança a nosso Salvador,
por intermédio da Santíssima Virgem, a quem Ele nada recusa.
Veja:
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