2006 O vagalhão da desordem universal


09/01/2007

Luis Dufaur

Metamorfose-haraquiri do socialismo francês

Em setembro, o “Courrier Internacional”, de Paris, apresentou um apanhado da imprensa mundial sobre esse fenômeno, sob o título "É duro, duro, ser de esquerda".(8)

O caso francês foi paradigmático. O Partido Socialista, última força política de esquerda com peso na França (pois o Partido Comunista está arrasado), humilhado e fracionado após estrepitosos fracassos, lançou em 2006 sua mais nova vedette, cuidadosamente preparada por especialistas da comunicação, almejando reconquistar a presidência em 2007: Ségolène Royal. Com ela, o PS apostou numa imagem que, nos padrões atuais, encontra-se nos antípodas do ideal socialista [foto 16].

Seus militantes já foram chamados de royalistes, confundindo-os com os militantes monarquistas, e ela foi tratada de "princesa socialista" [foto 17]. A candidata nem deixou de insinuar afinidade histórica, e até devoção pessoal, por Santa Joana d’Arc, que desta vez viria para tirar o socialismo da sua ruína extrema...

Royal provém de uma família tradicional de militares, é mãe de quatro filhos, reflete o tipo humano das classes abastadas francesas. Aparece geralmente vestindo tailleur dentro das normas da moral católica e adotou posições que há pouco eram exclusivas da extrema-direita. E até mais radicais, como preconizar o "enquadramento militar" dos alunos desordeiros. Também propôs relativizar o máximo de 35 horas semanais de trabalho, bandeira histórica do socialismo. É lugar comum que a disputa pela Presidência francesa será ganha por quem garantir melhor uma "disciplina mais rígida nas famílias, escolas e empresas".(9)

Por trás dessa imagem esconde-se um esquerdismo radical do tipo do Fórum Social Mundial. Royal propõe as políticas participativas do PT brasileiro, como foram aplicadas em Porto Alegre, aliás com resultado desastroso. Por isso, foi acusada de tentar reviver os sovietes ou métodos maoístas.

A indicação de Royal como candidata socialista à presidência em novembro representou "um deslizamento global da sociedade francesa em direção à direita", bem como o fato de que o "PS de Mitterrand-Fabius-Jospin está bem morto" [foto 18].(10) De fato, um partido como o PS, ao aceitar uma cirurgia estética tão ousada, embora mantenha a ideologia igualitária, efetua um como que haraquiri doutrinário e moral para conquistar o poder.

Avanço das direitas européias supera o das esquerdas

Na Inglaterra, o premiê trabalhista Tony Blair [foto 19] aplicou um socialismo tão diluído, que não se sabe bem no que se diferencia do conservadorismo — tido como radical — da ex-premiê Margaret Thatcher. Ainda assim, 2006 marcou seu declínio e é assente que será substituído pelo líder conservador. Na Eslováquia, o premiê social-democrata coligou-se com o Partido Nacionalista Eslovaco, rotulado de extrema-direita, nacionalista e xenófobo. Ameaçado de não ser mais considerado socialista por seus colegas no Parlamento Europeu, o partido socialista pouco se incomodou.

No continente europeu, salvas algumas exceções, virou rotina a ascensão eleitoral da extrema-direita, como se patenteou nas eleições gerais da Áustria e Holanda, municipais da Bélgica, onde aumentou 50%, e regionais de Meklenburg-Pomerânia, na Alemanha.

No início do ano, o ex-premiê Aníbal Cavaco Silva, de centro-direita, foi eleito presidente português. Em setembro, o socialismo sueco colheu a pior derrota desde 1914 e ascendeu ao poder um governo de centro-direita. Idêntica vitória do centro-direita ocorreu na República Checa, em junho. Durante os meses de setembro e outubro, milhares de húngaros manifestaram-se contra o governo socialista, bradando slogans contra o comunismo, por ocasião do cinqüentenário do glorioso levante anticomunista contra o ocupante soviético.

A exceção veio da Itália, onde as esquerdas capitaneadas por Romano Prodi venceram por menos de 0,1% dos votos o desgastado governo de Berlusconi. E no Chile, a candidata das esquerdas Michelle Bachelet obteve a presidência.

No Canadá, em janeiro, o conservador Stephen Harper foi eleito novo premiê, prometendo cortar impostos, favorecer a família, afastar o "casamento homossexual", combater a criminalidade e melhorar as abaladas relações com os EUA [foto 20].

Democratas americanos revestem-se como conservadores

A metamorfose das esquerdas para conter o avanço conservador teve um lance arquetípico nas eleições americanas de novembro, que renovaram a Câmara de Deputados, parte do Senado e muitos governos estaduais.

No segundo mandato, o presidente Bush foi se descolando do eleitorado conservador que o reelegeu em 2004. Ele lhe fizera algumas concessões: o juiz Samuel Alito entrou na Corte Suprema em fevereiro, e o presidente vetou a lei de pesquisa com células embrionárias em julho. Já em maio, contudo, era assente entre os conservadores que "Bush traiu a base que o levou ao poder".(11)

Para atrair os direitistas religiosos desiludidos, numerosos candidatos do Partido Democrata mudaram sua imagem. Cessaram de pedir mais aborto ou desarmamento; puseram-se a falar de religião e a defender instituições como a família e a propriedade, por vezes mais radicalmente que seus antagonistas republicanos. Até em matérias polêmicas como a guerra do Iraque, alguns colocaram-se à direita do governo. Candidatos como Harold Ford [foto 21] no Tennessee organizaram "cafés da manhã de oração" com os eleitores e prometeram jamais mexer "nem com tua Bíblia nem com teu fuzil”.(12) Resultado: como observou o anticonservador “New York Times”, "os eleitores expulsaram os republicanos, mas não se deslocaram para a esquerda. Em sua maioria, trocaram republicanos moderados por democratas conservadores".(13)

A mídia brasileira noticiou esta situação de modo deturpado, apresentando-a como uma vitória esquerdista. Sua atitude parece confirmar o ditado popular alemão: "Er lügt wie eine Zeitung" (mente como um jornal).

A nova presidente da Câmara dos Deputados, a democrata Nancy Pelosi [foto 22], adotou o estilo Ségolène Royal, usando vestidos bem cortados e moralizados, não escondendo ser mãe de cinco filhos. Mesma tática segue a senadora Hillary Clinton, na esperança de arrebatar de futuro a Casa Branca aos republicanos, com um discurso tão conservador quanto o público exija e com uma apresentação pessoal mais próxima da dona-de-casa bem estabelecida, sensata e de bom gosto, afastada do estilo feminista de sua juventude.

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