O velho do Restelo em roupa nova


03/02/2008

Cid Alencastro

Episódio dos Lusíadas ajuda a compreender a mediocridade atual, implícita na pregação de determinados “direitos humanos” de índole igualitária


O velho do Restelo, que increpava da praia os navegantes que partiam
É muito louvado o gênio de Camões ao cantar as navegações portuguesas, pondo em realce o que nelas havia de sublimes propósitos, coragem intrépida, fé indômita. Menos salientado, porém, tem sido o fino senso psicológico que o autor dos Lusíadas demonstra em sua epopéia, ao descrever o estado de espírito dos que objetavam contra tão altos ideais.

As grandes navegações encontraram, entre os quinhentistas, entusiasmo e dedicação, mas também não poucas críticas. Espíritos securitários, terra-a-terra, incondicionalmente apegados aos pequenos prazeres miúdos da vida de todos os dias, não suportavam ver nas navegações o fantasma do risco, o perigo dos mares, a incerteza da volta. E tinham por crueldade o sacrifício daqueles que deixavam em terra pais, irmãos, esposas e filhos, a fim de expandir para além das ilhas e das águas as fronteiras da Cristandade e os limites da brava nação lusa.

* * *


Os Lusíadas
Tais oposições, os Lusíadas as descrevem simbolicamente no famoso episódio do velho do Restelo, que increpava da praia os navegantes que partiam (C. IV, 90 a 104).

No fantástico empreendimento lusitano, o velho só via “glória de mandar, vã cobiça”, mostrando-se avesso a “uma aura popular, que honra se chama”.

Obcecado pelos riscos: “A que novos desastres determinas / De levar estes reinos e esta gente? / Que perigos, que mortes lhe destinas?”.

Medo de que Portugal se despovoe com as navegações: “Por quem se despovoe o Reino antigo / Se enfraqueça e se vá deitando a longe?/ Buscas o incerto e incógnito perigo”.

Chega a amaldiçoar o primeiro que construiu um veleiro: “Ó maldito o primeiro que no mundo / Nas ondas velas pôs em seco lenho, / Digno da eterna pena do profundo”.

* * *

As objeções do velho do Restelo não se fundavam, porém, em fatos maus nem utilizavam argumentos pérfidos. Eram boas e legítimas as realidades que ele invocava, como a família, que sangrava por se ver repentinamente privada de um de seus membros ou a nação despovoada.

O erro dele consistia em negar que há freqüentes circunstâncias na vida humana em que uma vocação mais alta conduz uma pessoa, ou mesmo um povo, a sacrificar situações legítimas, mas de menor elevação moral. Isto se aplica a vocações religiosas, como também a chamados de ordem temporal ou temporal-religiosa de grande vulto, como foram as cruzadas e as grandes navegações.

Quando as famílias são verdadeiramente bem constituídas –– não apenas do ponto de vista legal, mas principalmente espiritual ––, aceitam o sacrifício pedido com alegria, pois a renúncia constitui neste caso a fina ponta do amor de Deus.



Padrão dos Descobrimentos (Lisboa). Entre os navegadores, Camões segura um trecho dos Lusíadas
Hoje em dia tudo se passa de modo mais sutil do que na época quinhentista. Não é uma pessoa nem um povo que estão sendo induzidos a renunciar a ideais elevados, mas as nações em seu conjunto vêm sendo impelidas a abandonar toda e qualquer sublimidade e a própria Religião de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Pior ainda, o fundamento dessa incitação não é mais a afeição familiar, mas uns alegados “direitos humanos”, que vêem no homem uma espécie de animal sem alma, ao qual devem ser resguardados apenas a paz e o bem estar material. O direito à propriedade, a conhecer a verdade, a falar em nome de princípios religiosos perenes, a defender os atributos de Deus, tudo isso é excluído dos tais direitos.

Baseiam-se eles numa igualdade utópica e medíocre, que impede qualquer elevação de alma ou de ideal, qualquer elã de espírito que busque subir acima da vulgaridade reinante.

Tal é a nova roupagem com que se apresenta em nossos dias o velho do Restelo.

Veja:
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