A INOCÊNCIA
No exemplo de uma confidente da Imaculada Conceição


13/05/2010

Gregorio Vivanco Lopes


São Luís IX, Rei da França

A inocência na Idade Média

A inocência já foi o valor característico de alguma era histórica?

Sim. A própria História registra esse fato. A Idade Média foi a era em que os homens mais conservaram este espírito de infância, e não poucos historiadores o confirmam. Os medievais eram corajosos, leais, honrados, piedosos. Tinham fé. Porém criam com este espírito inocente, que nada tem de comum com o que hoje se vê, mesmo entre muitos dos que crêem.

Por exemplo, São Luís IX, Rei da França. Na cruzada, todo revestido de uma armadura de ouro, era mais alto que qualquer homem do seu exército. Quando chegou ao lugar da batalha, saltou do navio para dentro das águas do Mediterrâneo e entrou pela praia adentro, cheio de entusiasmo. Um rei que salta de seu navio e é o primeiro no desembarque!

E que dizer da inocência de Santo Tomás de Aquino? Ele acreditou inteiramente na lógica, como na fé, e obteve a perfeita conciliação entre a lógica e a fé. E voou nos horizontes do raciocínio, com a pureza de um Serafim. A lógica dele é tão pura quanto é puro o azul, o vermelho, ou o dourado dos vitrais de uma catedral. Nele, os conceitos de pureza, de sublimidade e de radicalidade se unem.

Dois grandes: um rei e um luminar da teologia e da filosofia. Isto vale também para os pequenos? Sim, pode-se admirar a inocência até de um simples copista medieval. Na Idade Média, esse idealismo inocente impregnava todas as classes sociais. Um autor inglês escreveu:

“Os fiéis se atrelavam às carrocinhas que transportavam pedras e as puxavam desde as pedreiras até a catedral. Seu entusiasmo se espalhou por todo o país. Homens e mulheres vinham de muito longe, carregados de pesados pacotes de provisões para os trabalhadores: vinho, óleo e trigo. Senhores e damas nobres puxavam as carrocinhas como todos os outros. A disciplina era perfeita, e o silêncio profundo. Todos os corações estavam unidos, e cada qual perdoava a seus inimigos” (Kenneth Clark, Civilisation, in Painton Cowen, Roses Medievales, Seuil, Paris 1979, p. 13).

A inocência, pedra de ângulo dos séculos futuros

A inocência não é um estado de alma passivo, resignado, inerte. Pelo contrário, é ativo, atuante, empreendedor.

A inocência está sempre à procura de algo. De algo que é cheio de luz, de paz, de ordenação, de concatenação e de força, mas cheio de tranqüilidade. Este algo tem a capacidade de tudo mover sem mover-se a si próprio. Tem muito de inefável, de divino, de interior e de secreto. Ela tem de ser, portanto, a luz e a glória, o marco fundamental e a pedra de ângulo dos séculos futuros. Tem de iluminar a humanidade inteira, inspirar os sistemas filosóficos, as instituições e os costumes; tem de despertar as escolas de arte e, muito mais do que isso, inspirar os santos e dar à Igreja novos e mais rutilantes dias de glória.

Será o reflexo do olhar, do sorriso e da majestade de Nossa Senhora, que se tornará visível no Reino de Maria, segundo a previsão de São Luís Maria Grignion de Montfort.


Quinquagenários, sexagenários, poderiam pensar: “Como é bela a juventude! Tenho saudades da minha inocência, daquela candura de alma, daquele frescor!

Arco voltaico entre a imagem primeira da inocência e a última

Se um homem soube, durante toda a vida, crescer não só em experiência, mas em penetração de espírito, em bom senso, em sabedoria, sua mente adquirirá na velhice um esplendor e uma nobreza que transluzirá em sua face e será a verdadeira beleza de seus últimos anos. Seu físico poderá sugerir a lembrança da morte que se aproxima, mas em compensação sua alma terá lampejos da imortalidade.

Quinquagenários, sexagenários, poderiam pensar: “Como é bela a juventude! Tenho saudades da minha inocência, daquela candura de alma, daquele frescor! Não quero morrer sem ter readquirido as qualidades de minha infância, de maneira que, quando me apresente diante de Nossa Senhora, eu possa dizer: Minha Mãe, minha vida inteira está posta em vossas mãos. De tudo quanto me destes, não perdi nada. Vós me fizestes frutificar tudo quanto me destes. Mas houve algumas coisas que me foram dadas nos meus primórdios, e que nunca mais tive, mas preciso recuperar”.

Quando alguém chega aos primeiros albores da razão, Deus de algum modo lhe manifesta como quer ser visto, conhecido e adorado. É bem provável que, quando ele esteja para morrer, Deus de alguma forma se manifeste novamente a ele naquela forma primeva, que é o modo pelo qual a pessoa é mais atraída por Deus Nosso Senhor. Estabelece-se uma espécie de arco voltaico entre o momento em que a pessoa nasceu e o momento em que vai dar o último suspiro. E aquela imagem especial de Deus novamente se apresenta, atraindo a pessoa e convidando-a para o Céu.

Ao longo de toda a vida, há instantes de rememoração da imagem primeira e de preparação para a imagem última. A pessoa assim preparada, tendo aproveitado a imagem primeira da inocência e recebendo a imagem última, pode dizer: “Oh meu Deus, eu vos adoro, e vos adoro assim!” Então Deus colhe essa alma e a leva para o Céu, porque ela é semelhante à imagem que Ele lhe tinha dado com a inocência primeva.

Deve-se crescer em inocência ao longo de toda a vida

Na Catedral de Estrasburgo, a cada quarto de hora se apresenta um dos quatro autômatos, no alto do monumental e célebre relógio. Passam diante da morte um menino, um jovem, um homem na força dos anos e um velho. Anjos se movem. Um deles toca uma espécie de gongo e outro inverte a posição de sua ampulheta, para significar que terminou um tempo e começa outro.

De alguma maneira, em nossa vida, quando passamos de uma para outra idade, um gongo simbólico também toca, uma ampulheta é virada para baixo. Algo muda. Mas a mudança significa uma ruptura? Ou dever-se-ia pensar numa soma? Um velho pode ter algo da infância, da juventude, da idade madura e da sua própria idade?

Geralmente se considera que a infância é inocente, a juventude é ardorosa e idealista, a idade madura é ponderada e venal, e a velhice se arrasta. Entretanto, a inocência é algo que convém a todas as idades: deve-se crescer em inocência até a hora da morte.

Quando o homem é fiel, as boas qualidades das várias idades se somam. Ele deve conservar até a velhice todas as qualidades da infância: na juventude, deve ter as da infância; na idade madura, as da juventude e da infância; na velhice, um requinte mediante o qual possua todas as qualidades das idades anteriores. Quando morre, entrega sua alma a Deus com as riquezas de toda a vida. É muito mais bonito exalar o último suspiro assim. A pessoa entrega-se a Deus como quem devolve o conjunto dos tesouros que d’Ele recebeu, implorando a misericórdia divina para o que não estiver completo. Assim deve ser a morte do varão católico.

Portanto, nas várias idades devemos ter como pressupostos os dons da idade anterior. Isto não significa que não devemos amadurecer, mas sim que precisamos somar as perfeições próprias de cada idade, chegando à extrema idade com o idealismo da infância e com todas as características das idades anteriores. Se alguém perdeu sua inocência primeva, trate de recuperá-la, e assim vai recuperar a felicidade possível nesta Terra.


O sorriso e a fisionomia de Nossa Senhora vão nos convidar a ver o aspecto de Deus que, desde o início de nossa vida, queria que víssemos

Entrar no Céu como na casa paterna

Por vezes vem-nos o pensamento de que a entrada no Céu será como se fosse num país completamente estranho, onde não conhecemos ninguém. No fundo, ficamos um tanto apavorados... E pode-se ter ainda a impressão de que o julgamento não tem muita relação com nossa biografia, mas com uma tabela de Dez Mandamentos que se deveriam ter praticado. Não nos parece que vamos rever pessoas muito conhecidas, mas ter contato com desconhecidos que nunca estiveram diante de nós.

A expressão talis vita, finis ita [tal foi a vida, assim será o fim] só se explica se considerarmos a vita como o existir da pessoa, ou seja, como o conjunto dos anelos e das aspirações que teve, e das batalhas que travou. Na biografia da pessoa, arquitetonicamente concebida por Deus, há um primeiro impulso, e tudo que se segue é disposto pela Providência na coerência desse primeiro impulso, para dirigi-lo a uma determinada orientação. Assim sendo, toda a existência tem um significado. Isto difere da concepção comum sobre o que são o existir de um homem, o Juízo Final e o julgamento de Deus. É algo completamente diverso, e é belíssimo.

O mesmo sucederá também em relação a Nossa Senhora, Medianeira entre Deus e os homens. O sorriso e a fisionomia d’Ela vão nos convidar a ver o aspecto de Deus que, desde o início de nossa vida, queria que víssemos. Eis uma concepção lógica, e ao mesmo tempo atraente, suave, coerente e exaltante.

Na hora da morte acaba o exílio, porque termina o lusco-fusco e se vai ter o grande encontro: o grande encontro com Aquele, com “A” maiúsculo, no lar paterno da alma. Com Aquele que é mais eu do que eu mesmo, e em cujo convívio vou passar a viver e a existir por toda a eternidade. É a sensação de volta à casa paterna, depois de uma longa peregrinação. É a procura do semelhantíssimo a mim, mais eu do que eu mesmo.

Terei então grande apaziguamento, grande serenidade e grande alegria por todo o sempre, pois terei encontrado Aquele que, de certa forma, comecei a procurar no primeiro momento de minha lucidez mental. É o momento supremo de minha vida: a morte!

E na hora da morte, num último ato de veneração e de enlevo, a alma se desprende do corpo e vai se unir ao Arquétipo [Deus], sentindo-se pequenina, alegre de se sentir pequenina, de contemplar e admirar desinteressadamente. Como uma criança que volta para os braços de sua mãe.

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