A INOCÊNCIA
No exemplo de uma confidente da Imaculada Conceição


13/05/2010

Gregorio Vivanco Lopes


Santa Bernadette na gruta das aparições

II — Trechos do livro

Bernadette vous parle

Com a devida atenção, podem-se encontrar na vida dos santos exemplos de manutenção ou recuperação da inocência primeva. Uns por toda a vida, outros por períodos maiores ou menores, todos lutaram para poder apresentar ao Criador, no fim da existência terrena, esse precioso patrimônio ampliado e enriquecido com a compreensão e prática do bom, do verdadeiro e do belo. Não foi diferente com Santa Bernadette Soubirous, e isso é ressaltado magistralmente por seu maior biógrafo, o Pe. René Laurentin, nos textos que a seguir apresento à apreciação do leitor.

Talvez o verdadeiro segredo de Bernadette seja simplesmente a sua simplicidade. Nada é mais escondido do que a transparência. Tentemos pois decifrar esse mistério global.

A infância de Bernadette

O segredo de Bernadette é, primeiramente, o impenetrável silêncio sobre a sua infância. Ele cobre mais de um terço da sua vida, mas permanece praticamente em branco, como essas “terras desconhecidas” dos antigos mapas-mundi. Porém, o pouco que conhecemos, a começar pelo silêncio mesmo de Bernadette, assemelha-se surpreendentemente ao que se desenvolveu em seguida, e que culminou no sofrimento e no despojamento dos últimos dias. É-se tentado a achar que tudo já estava lá, na menina pobre de Lourdes, humildemente devotada a Deus no subdesenvolvimento e no sofrimento, que eram seu quinhão.

Não é senão uma hipótese, sem dúvida; mas ela traz tanta luz, que é difícil desviar-se dela. Uma convicção se impõe: no limiar das aparições, tudo já estava em germe em Bernadette, o essencial estava pronto, a história da graça que a acompanhava já havia chegado a uma primeira maturidade. Aliás, uma lei da ação de Deus é que o essencial do dom precede sua manifestação.

Assim, desde o início da Anunciação a Virgem Maria foi saudada, no momento em que ela saía da sombra, como a “cheia de graça”. O que veio a seguir foi o desabrochar da graça que longa e obscuramente o Senhor tinha enraizado nela.

Certos traços da infância de Bernadette manifestam esta luz de antes das aparições:

— Quando o bom Deus permite que aconteça, a gente não se queixa.

— Quando nada se deseja, tem-se o que é necessário.

Do mesmo modo em relação ao rosário que ela pega instintivamente no bolso de seu avental, no limiar das aparições. Era já o instrumento de sua pobre prece, tornada reflexo; era já o sinal de uma presença na hora em que surgiu para ela, naquele oco sombrio [da gruta de Massabielle], a Dama rodeada de sol.

Em resumo, tudo já estava lá, mais ou menos claramente, nesse momento em que Bernadette entra na História: pobreza, oração, penitência, uma certa presença habitual da Virgem Maria na comunhão dos santos. A partir daí, tem-se a sensação de que o resto não foi senão uma explicitação desse dom anterior e fundamental. A seqüência da vida de Bernadette — aquilo que nós chamamos a zona clara, que inclui a graça das aparições — seria um desenvolvimento de seus obscuros inícios.

Dizer que desde cedo tudo estava dado, não significa uma constatação banal: ela recebeu gratuitamente o batismo, que em certo sentido contém tudo. Certamente esse fator conta, mas nós nos referimos aqui à santidade; dito de outro modo, ao desenvolvimento vivido desse dom fundamental.

Por que se mostra ele tão puro em Bernadette? É um mistério da gratuidade, mas é também um mistério de uma resposta livre, de um instinto que soube fielmente corresponder ao essencial.

Crescimento de Bernadette na inocência

Bernadette não viveu tudo isso isoladamente, deve muito ao ambiente que a formou. Recebeu de seu meio, um ambiente cristão, a fé e o batismo que são inseparáveis. [...] Mais precisamente, ela soube realizar de maneira excepcionalmente pura os modelos que lhe foram oferecidos em sua família pobre. [...]

Apesar de uma grande indigência de instrumentos verbais e intelectuais, Bernadette soube discernir, recolher, viver de maneira excepcionalmente pura a graça dos pobres segundo o coração de Deus. Assim, a menina estava apta a receber a austera mensagem de 18 de fevereiro de 1858, que resumia tão bem seu passado, ao mesmo tempo que anunciava o programa de sua carreira terrestre e pós-terrestre: “Eu não prometo tornar-te feliz neste mundo, mas no outro”.

A mensagem das aparições exprime e confirma aquilo que Bernadette já vivia. Encarrega-a não apenas de repetir as palavras da humilde mensagem — a respeito das quais ela por vezes tropeça, notadamente aquelas que têm por objeto a fundação da peregrinação — mas de testemunhar a graça que ela já vivia, irradiando-a através de todo o seu ser: pobreza, oração, penitência, filial abandono à Virgem, e com Ela a Deus. É nesse sentido que Bernadette foi logo considerada a melhor prova da mensagem de Lourdes.


No centro, sentada, Santa Bernadette já freira

Bernadette religiosa

A vida em Nevers [no convento das Irmãs da Caridade] situa-se na mesma linha. [...] Aqui também, o verdadeiro segredo de Bernadette é sua transparência, é a simplicidade que a fez assumir tantas coisas — umas por atração, outras por obediência — sem cessar de ser ela mesma.

Ela soube tirar partido das realidades humanas e da exigência divina, das humilhações e da veneração, da sua natureza própria e da obediência, da regra e do Evangelho. Seu segredo é a maneira pela qual ela soube viver as exigências dos homens e os impulsos do Espírito Santo.

Ela assumiu tudo isso com simplicidade e quotidianamente, no esquecimento de si mesma, num simples dom de si própria, tendo em vista a verticalidade para Deus e a horizontalidade para os homens. Seu segredo é, por fim, um segredo de paciência, de sofrimentos, de esquecimento de si mesma no amor de Deus escondido.

Assim Bernadette inventou — ou melhor, o Espírito Santo inventou ou manifestou nela, com sua participação consciente, mas sem nada de refletido ou de explicitado — um tipo de santidade cristã sem cintilação, sem obras, sem ciência, reduzida à raiz do Evangelho, ao amor que Deus dá e recebe. [...]

Há aqui uma mensagem que é preciso não deixar que se perca em nossa época de convulsões. [...] Aquilo que ela assim viveu chegou ao seu último desabrochar na provação e no silêncio, que se adensaram no termo de sua vida. É o tempo do despojamento, no qual ela toma, em Deus, a estatura de sua idade adulta. [...]

A santidade de Bernadette parece ser anterior à graça excepcional das aparições. Ela foi para isso preparada na pobreza de sua infância, e as aparições a manifestaram ao mundo.

Tratar-se-ia de uma santidade já pronta, sem desenvolvimento nem evolução? Seguramente não, mas trata-se de um desenvolvimento homogêneo, no qual o carisma patente expande e manifesta o dom latente.

A dificuldade está em atingir, para aquém dos escritos e das palavras que são tributários do meio cultural, a contribuição própria de Bernadette para a espiritualidade, porque este elemento original permanece implícito.

Para manifestar este implícito, é-se tentado a aproximar Bernadette de uma outra santa que se situa na mesma linha, no mesmo filão de santidade, se assim podemos nos exprimir: Santa Teresinha do Menino Jesus, que tinha seis anos e meio quando da morte de Bernadette.

E-mail do autor: gregorio@catolicismo.com.br

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Notas:

1. A inocência primeva e a contemplação sacral do universo no pensamento de Plinio Corrêa de Oliveira, Artpress, São Paulo, 2008. A obra foi lançada por iniciativa do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, por ocasião do centenário do nascimento desse insigne pensador e líder católico.

Este livro encontra-se disponível no site: http://www.pliniocorreadeoliveira.info/Livro da Inocencia/2008_IP_06_I_Cap_04_A_InocPrim_plenitude.htm - _edn6#_edn6

2. René Laurentin, Bernadette vous parle, Lethielleux, Paris, 1972.

Páginas: 1 2 3 4

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