Um abismo atrai outros abismos
Investida para ampliação dos casos de aborto no Brasil


14/04/2005

Padre Davi Francisquini

Redes organizadas exercem ação pró-aborto


Manifestantes ostentam cartazes abortistas em manifestação pró-aborto nos EUA

É um erro pensar que uma tal avalanche de pecados obedece apenas ao dinamismo puramente espontâneo de uma sociedade corrompida. Pelo contrário, é notória a existência de um imenso movimento pró-aborto, presente em todos os países, que se dedica a promover a legalização e a prática do aborto. Já em 1914, a revista feminista “The Woman Rebel”, declarava que “o aborto, praticado por profissional experiente nas melhores condições de higiene, passará brevemente a ser encarado como útil, necessário e humano, mesmo que a mulher o solicite pela simples razão de não desejar ter um filho, ou porque não é do seu agrado tornar-se mãe”. Outro artigo afirmava: “Se uma mulher quer ser efetivamente livre, deve tornar-se absolutamente senhora do seu próprio corpo. Deve reconhecer seu direito absoluto [...] de suprimir o germe da vida”. Tais pontos de vista estavam muito longe de ser predominantes na vida americana em 1914.

São incontáveis as organizações públicas e privadas no mundo inteiro que se dedicam a promover o aborto: NARAL, PP (Planned Parenthood), BEMFAM (ramo brasileiro do Planned Parenthood), numerosas ONGs, etc. Constituem uma rede organizada, influente, dispondo de imensos recursos financeiros e midiáticos.

Anti-abortismo: causa eminentemente católica


Nos Estados Unidos existe uma intensa polarização a respeito do aborto. Na foto, a monumental Marcha Pela Vida, em Washington

O aborto, mais que o divórcio, é uma realidade quotidiana na sociedade contemporânea. Por ser menos “visível”, alguns podem pensar que é menor seu impacto na modificação dos valores morais que fundamentam a vida da família. Mas se as aparências se mantêm um pouco, devido ao segredo que normalmente cerca o aborto, a destruição moral que provoca na sociedade como um todo não é menor que a do divórcio. Pelo contrário, é ainda maior, pelo caráter homicida e monstruosamente antinatural que o caracteriza, implicando um estado de alma de desprezo pela vida dos próprios filhos, que são a razão essencial e primeira da família.

A maioria que se opõe ao aborto sente-se impotente e confusa ante o estrondo e a violência da ofensiva abortista em sua campanha de desinformação, através dos meios de comunicação, ocultando os dados mais essenciais do debate. Argumentos sentimentais a favor do aborto — sofrimento psíquico da mulher grávida que não deseja seu filho, direito da mulher ao seu próprio corpo — ocupam ampla e ruidosamente o espaço da mídia.

Do lado da defesa da vida do nascituro, os meios de comunicação só permitem divulgar alguns argumentos — verdadeiros e até fundamentais, mas insuficientes para motivar as pessoas — como, por exemplo, o direito natural à vida que o feto tem desde a concepção. Muitas verdades como estas são deliberadamente ocultadas à opinião pública por uma estrita campanha de silêncio. Por exemplo, a extrema crueldade que é a realidade concreta de um aborto; os graves perigos físicos e psíquicos que correm as mulheres que abortam.

Mas sobretudo se silencia o pecado gravíssimo que significa negar ao filho concebido a vida sobrenatural, além da vida temporal, deixando-o morrer sem administrar-lhe o Sacramento do Batismo. Pois ninguém deve ter a ilusão de que nos ambientes onde se pratica o aborto criminoso seja fácil encontrar quem aceite batizar o feto que está sendo brutalmente assassinado.

Esta é uma das principais razões pelas quais a causa anti-aborto é eminentemente católica.

As leis anti-abortistas promulgadas nos EUA no século XIX foram na realidade iniciativa da sociedade civil. Isso se deveu ao ambiente anticatólico que predominava naquela época. Mas, quando o crescimento do número e influência dos católicos no país obrigou certos setores a moderar sua atitude hostil, os católicos tornaram-se a ponta-de-lança da luta contra o aborto. Embora existam em muitos países numerosos movimentos não-católicos contrários ao aborto, a causa anti-aborto é principalmente católica.

Coerência doutrinária ao longo dos séculos


Anti-abortistas protestam diante dos escritórios da Planned Parenthood na Flórida (EUA)

A razão disso é que a doutrina católica, de modo mais coerente e estável ao longo dos séculos, com coragem e sem jamais ceder em um único ponto, enfrentou a incompreensão e a hostilidade do mundo, defendendo os direitos de Deus, do nascituro, da família e da sociedade contra os efeitos demolidores do aborto. Tertuliano, na sua Apologia do Cristianismo, escrita no ano 197, afirma que a Igreja católica sempre condenou o aborto. Os pagãos, então incitados pelos judeus, acusavam os cristãos de vários tipos de crimes, entre os quais a infâmia de que na Santa Missa os cristãos sacrificavam e comiam criancinhas. Tertuliano responde: “São os pagãos, e não os cristãos, que matam seus filhos em cerimônias religiosas. A nós cristãos, o homicídio é absolutamente proibido. Não é permitido destruir a criatura concebida no útero materno. É uma antecipação do homicídio impedir o nascimento, não importa se o que se está matando é uma alma já plena ou uma que está nascendo. Já é um homem o que está tornando-se tal, todo fruto já está na semente”.

Os promotores do aborto têm alegado que os católicos não têm direito de impor aos que não têm fé suas crenças baseadas na fé. Os católicos teriam uma atitude preconceituosa. Sua posição seria própria de fanáticos. Nada mais falso.

Quando os católicos se opõem ao aborto, o fazem baseados também em dados científicos, os quais mostram a falsidade e a nocividade, sem qualquer sombra de dúvida, dos argumentos pró-aborto. A medicina e a higiene são ciências naturais e servem-se de meios naturais de investigação. Mais ainda, sendo o homem o sujeito da medicina e da higiene, composto tanto de matéria quanto de espírito, essas ciências têm um conteúdo ético e moral, e na sua aplicação prática devem sujeitar-se às regras que lhe são intrínsecas.

A ética é o estudo e a prática da lei moral, como se deduzem lógica e racionalmente do estudo da natureza das coisas, isto é, da Lei natural. A moral é o estudo e a prática da lei fundada na Revelação. A harmonia e a concordância que existem entre ambas são tais, que não existe nem pode existir oposição entre a ciência médica e a moral católica. Quando o católico defende com vigor as leis divinas, não está impondo arbitrariamente uma crença pessoal, mas exigindo que a justiça, a verdade, a santidade da vida humana sejam protegidas e postas em prática. O aborto é, portanto, um crime não só para um católico, mas também para todo ser humano. E ninguém tem direito de praticar um crime por considerar individualmente que tal ato não é crime.

Desejo dos abortistas: não levantar a questão moral


“Católicas” pró-legalização do aborto. O Brasil, segundo estatísticas, é o País com a maior ocorrência de abortos no mundo

O Governo federal, a princípio, determinou ao grupo que discutirá a descriminalização do aborto não colocar em questão a moralidade da prática, e sim seu efeito sobre a saúde pública. Com isso, os setores envolvidos com o assunto pretendem minimizar a pressão de grupos religiosos, notadamente a Igreja Católica, contra a legalização do aborto”.(10) Os ativistas pró-aborto sabem que o tema desagrada à maioria, e que seu movimento é minoritário. Mas levantar o espectro do poder dos católicos como ameaça às liberdades civis, procura ser uma bandeira que congregue maior número de adesões na opinião pública.(11)

Tendo, assim, inicialmente excluído a participação de organismos religiosos na comissão que reverá a legislação do aborto, o Governo recuou posteriormente, e incluiu nessa comissão o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), que engloba, além da CNBB, mais seis confissões religiosas: a chamada igreja cristã reformada, a episcopal anglicana, a evangélica de confissão luterana, a metodista, a presbiteriana e a ortodoxa (cismática).

A tendência de não incluir na temática a imprescindível questão moral corresponde à orientação, por exemplo, da NARAL (National Abortion and Reproductive Right Action League), a mais importante organização pró-aborto nos EUA. Seu presidente Lawrence J. Lader pertence à linha “ecológica”, que considera a presença do homem uma ameaça ao equilíbrio ecológico do mundo. Nos anos 1930-40, envolveu-se com o movimento Crescimento Populacional Zero, e em 1971 escreveu a obra Breeding Ourselves to Death (Reproduzindo-nos para a morte). A idéia de Lader e de NARAL é não enfocar o debate diretamente na questão do aborto.

Além de vítimas de homicídios, privados da visão beatifica


Além de serem privadas da vida, as crianças abortadas sem o batismo, sobretudo ficam privadas da visão beatífica

Há um dado essencial, na polêmica sobre o aborto, que é cuidadosamente silenciado pelos meios de comunicação: o fim último do homem.

Todo ser humano tem uma alma imortal, sendo seu fim transcendente Deus. As relações de cada alma com Deus são um mistério que paira absolutamente acima do desenvolvimento mais ou menos perfeito de sua sensibilidade, e mesmo de sua inteligência. Essas relações começam já quando a criança está sendo formada no seio materno. Deus disse a Jeremias: “Antes que saísses do seio materno, Eu te consagrei” (Jer 1,4). Também Isaías exclama: “Atendei, ó povos distantes! Yavé me chamou desde antes do meu nascimento, desde o seio de minha mãe me chamou por meu nome” (Is 49,1).

Ensina a Igreja Católica, depositária da Verdade revelada, que as crianças que morrem sem o batismo não podem alcançar a visão beatífica. Ainda que não tenham sequer aberto os olhos à vida, e conseqüentemente não tenham cometido qualquer pecado atual. O III Catecismo da Doutrina Cristã é claro quanto a esse ponto: “567 – É necessário o batismo para salvar-se? R: O batismo é absolutamente necessário para salvar-se, tendo dito expressamente o Senhor: quem não renascer na água e no Espírito Santo não poderá entrar no reino dos Céus”.(12)

Anencefalia, atual “cavalo de batalha” dos abortistas

O significado literal de “anencefálico” é “sem cérebro”. Mas o termo não é apropriado, porque as crianças com esse defeito congênito têm uma parte do sistema nervoso central, que lhes permite manter o coração, os pulmões, rins e fígado funcionando. A criança anencefálica não pode ver, ouvir, nem mesmo sentir. Também não pode pensar, pelo menos no sentido comum da palavra. Por tudo isso, afirmam alguns que são “mentalmente mortos”; outros consideram o anencefálico um “sub-humano”, e chegam a afirmar que a criatura assim concebida no seio materno é inferior a um “macaco saudável”.(13)

Atualmente a ofensiva midiático-legislativa para impor uma ampliação dos casos de aborto legal é centrada em torno do tema da interrupção da gravidez nos casos de diagnóstico de anencefalia.

Coloca-se assim uma questão especialmente delicada para as consciências católicas. Com efeito, encontrarão na sua luta contra essa lei “aliados” que de fato não o são. Trata-se de um importante setor do ambiente médico que propugna que a gravidez de tais fetos seja levada a termo, e que nasçam vivos para se poder imediatamente arrancar-lhes os órgãos vitais (coração, pulmão, fígado, rins) com fins de transplante para outras crianças doentes.

Médicos, mas também inescrupulosos e algozes

Os órgãos da criança que assim nascesse, graças aos bons ofícios desses comerciantes da vida, seriam coletados como se o recém-nascido fosse uma espécie de “granja de órgãos”, não uma vida humana com um fim natural e sobrenatural, a ser respeitado acima de tudo.

Existe uma forte pressão desses setores para que sejam modificados os critérios éticos e legais que impedem retirar os órgãos vitais da criança anencefálica ainda viva. Nos EUA, por exemplo, o Conselho de assuntos éticos e jurídicos havia estudado, em 1988, os aspectos éticos do uso de órgãos dos neonatos anencefálicos, concluindo ser eticamente aceitável retirar órgãos dos anencefálicos só depois de mortos. Em 1994, depois de um ano de discussão, o Conselho mudou sua posição e decidiu que “é eticamente aceitável retirar órgãos vitais de anencefálicos ainda antes da sua morte”.

Como a lei atual considera que a morte ocorre quando se produz a parada cardíaca ou o desaparecimento de toda função cerebral (eletroencefalograma “chato”), coloca-se para eles o problema de que o recém-nascido vivo anencefálico tem atividade cerebral e seu coração ainda bate. É necessário, portanto, que a lei “abra uma exceção” e permita a retirada dos órgãos de uma criança ainda viva.

O leitor pode facilmente ver as desconfianças que desperta essa corrente, pois a conclusão imediata do público ante essa proposta tem sido a pergunta óbvia: se a regra “doador morto” é violada uma primeira vez, quais serão as vítimas da próxima tenebrosa “exceção”? Crianças com outras doenças graves, velhos que não podem valer-se por si mesmos, qualquer indivíduo em “estado vegetativo” prolongado?

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