Kamikaze

Folha de S. Paulo, 15.2.69
23/08/2004

Plinio Corrêa de Oliveira

De que maneira se processou, “pari passu” com a germinação do progressismo, a formação do núcleo de batalhadores que daria origem, mais tarde, à TFP? Quais eram os componentes desse núcleo, que situação tinham no meio católico, quais suas esperanças e suas lutas primeiras?

Para responder, ainda que em traços muito largos, a estas perguntas, é necessário evocar as condições de vida da Igreja no período de 1937-1943.

Naqueles anos havia um grande e luminosa realidade que se chamava o “movimento católico”. Nessa designação genérica se compreendia o conjunto formado, de norte a sul do país, pelas associações religiosas. É claro que neste, como em todos os vastos conjuntos, havia certa heterogeneidade. Assim, a par de entidades inertes, esclerosadas pelo tempo ou abortadas por fatores vários, havia outras de uma vitalidade incontestável, e algumas até de uma pujança extraordinária. Entre esta últimas, refulgiam as Congregações Marianas. O movimento mariano, que começara a se expandir no período de 1925 a 1930, chegava então ao seu apogeu. Prestara ele à Igreja o incomparável serviço de – num país como o nosso, em que a religião só era praticada pelo sexo feminino e por uma minoria de homens de idade madura – atrair para a vida de piedade e para o apostolado legiões inteiras de jovens de todas as classes sociais.

Todo este mundo de associações novas e antigas – pois pela quantidade se tratava de um mundo – caminhava para a frente unido filialmente a um clero no qual eram numerosas as personalidades de valor e prestígio, e a um episcopado coeso e profundamente venerado.

A força do movimento católico se provara em mil conjunturas. Assim, em 1933, o mais jovem dos candidatos à Constituinte Federal foi ao mesmo tempo o mais votado do país. Tinha 24 anos, e obteve 24 mil votos (o necessário para se eleger era 12 mil). Tal votação, deveu-a ele exclusivamente ao apoio das entidades católicas de São Paulo. O teste surpreendeu e impressionou tanto, que a partir desse momento a Liga Eleitoral Católica passou a ser reputada uma das maiores potências do país. Hoje, transcorridos mais de 35 anos, é com alegria e gratidão para com Nossa Senhora que o eleito de 1933 lembra estes fatos para os leitores da “Folha de S. Paulo”.

* * *

Encerrada minha atuação no cenário legislativo, continuei a militar, como o fazia desde 1928, nas fileiras marianas. Foi-me então confiada a direção do “Legionário”, órgão da Congregação Mariana de Santa Cecília. No quadro redatorial desse semanário formou-se gradualmente um grupo de amigos, todos congregados como eu, que nos dedicamos de corpo e alma ao jornalismo católico.

O “Legionário” não se destinava ao grande público, mas tão somente a esse imenso meio, algum tanto fechado, que era o movimento católico. Dentro desse meio, se estendia de norte a sul do país sua influência de representante do pensamento das forças mais jovens e dinâmicas.

Realçava ainda essa influência a situação pessoal de meus colaboradores e a minha no movimento católico, fazíamos parte da direção das entidades mais marcantes da juventude católica de São Paulo, isto é, da cidadela mariana por excelência. A par de outros colaboradores de valor pouco comum, dois jovens e já famosos professores de seminário atuavam no “Legionário”. Um deles era Mons. Antônio de Castro Mayer, nosso assistente eclesiástico. E o outro era o pe. Geraldo de Proença Sigaud, SVD, assíduo colaborador. Mons. Mayer foi vigário-geral para a Ação Católica e o pe. Sigaud assistente eclesiástico da JIC e da JEC ao mesmo tempo em que eu era presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica.

Nuvens, dissensões: sim, o “Legionário” as encontrou, mas pequenas. Provinham de leitores fascistizantes, irritados com a campanha sem tréguas que o “Legionário” movia contra o nazismo e o fascismo.

Tudo prometia pois um porvir de trabalhos fecundos e pacíficos.

* * *

Foi precisamente aí que a tragédia provocada pelos germes progressistas – que descrevi no artigo de quarta-feira última – estourou.

Desde os primórdios da crise, o “Legionário” foi sutilmente atacado, pois era o porta-voz de uma mentalidade que a urdidura progressista queria extirpar, para a substituir pela que hoje aí se vê. Desde os primórdios também, em nossas reuniões de redação, notamos que o mal vinha espalhado com suma arte, lábia e cópia de prosélitos. Era preciso dar, em meio à desprevenção geral, um brado de alarma, que acordasse a atenção de todos. Assim, foi com o inteiro apoio de Mons. Mayer e do pe. Sigaud, que publiquei o livro-bomba “Em Defesa da Ação Católica”. Era um gesto de kamikaze. Ou estouraria o progressismo, ou estouraríamos nós.

Estouramos nós. Nos meios católicos, o livro suscitou aplausos de uns, a irritação furibunda de outros, e uma estranheza profunda na imensa maioria.

A noite densa de um ostracismo pesado, completo, intérmino, baixou sobre aqueles meus amigos que continuaram fiéis ao livro. O esquecimento e olvido nos envolveram, quando ainda estávamos na flor da idade: era este o sacrifício previsto e consentido. A aurora, como veremos, só voltou a raiar em 1947.

Mas o progressismo nascente recebeu com o livro um golpe de que até hoje não se refez. É que a imensa maioria a quem a denuncia do livro causou estranheza, ficou entretanto de sobreaviso com o progressismo nascente, e não se deixou embair por ele. Se o progressismo não passa hoje, no Brasil católico, de uma algazarra infernal promovida por uma minoria influente e de grande cobertura publicitária, se a massa católica dele está arredia, deve-se isto, em grande parte, ao brado de alarma precoce do “Em Defesa da Ação Católica”. O sacrifício do kamikaze valeu o muito que custou.

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