Aborto, uma questão constitucional
05/12/2003
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
TENDÊNCIAS/DEBATES
Neste artigo, pretendo examinar a questão do aborto pelo estrito prisma
da Constituição, o que vale dizer sem conotações
de natureza religiosa, pessoal, sociológica ou de qualquer outra espécie.
A Constituição brasileira proíbe o aborto. O art. 5º claramente
cita, entre os cinco direitos mais relevantes, considerados fundamentais, o
direito à vida. Se se interpretar que a ordem de sua enunciação
pressupõe a sinalização de importância, dos cinco é o
mais relevante.
Está o artigo 5º "caput" assim redigido: "Todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: ...".
O texto é de muito maior clareza que aquele da Constituição
pretérita, que garantia apenas os "direitos concernentes à vida",
permitindo interpretações, muitas vezes convenientes, de que
direitos que diriam respeito à vida estariam assegurados, mas não
necessariamente o próprio direito à vida. Tanto assim é que
foi considerado recepcionado o Código Penal de 1940, que admitia, em
duas hipóteses, o aborto, e editado um ato institucional, adotando pena
de morte -nunca aplicada- para crimes contra as instituições
e o Estado.
A tese de
que a vida humana começaria no terceiro mês de gestação,
sendo antes vida animal, não resiste à Lei Suprema
A atual Constituição, claramente, assegura "o próprio
direito à vida", reiterando, no bojo do artigo 5º, ser vedada
a pena de morte no país. Assim, mesmo nos crimes mais hediondos, o criminoso
não pode ser punido com a morte.
Por outro lado,
o par. 2º do art. 5º da Carta da República
declara que os tratados internacionais sobre direitos individuais são
considerados incorporados ao texto supremo, significando que tais tratados
passam a ter status de norma constitucional -e não ordinária,
como ocorre com os demais tratados internacionais. Está assim redigido: "Os
direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados,
ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte".
Ora, o Brasil
assinou o Pacto de São José da Costa Rica, tratado
internacional sobre direitos humanos. No referido tratado, há expressa
declaração de que a vida principia na concepção,
o que vale dizer: do ponto de vista estritamente jurídico, o Brasil
adotou, ao firmá-lo, que a vida de qualquer ser humano tem origem na
concepção. O artigo 4º do referido tratado tem a seguinte
dicção: "Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida.
Este direito está protegido pela lei e, em geral, a partir do momento
da concepção".
Dessa forma, duplamente,
o legislador supremo assegurou o direito à vida
(art. 5º, "caput", e par. 2º) e definiu que a vida existe
desde a concepção.
Tanto o par. 2º quanto o "caput" do art. 5º, por outro
lado, são cláusulas pétreas e não podem ser modificados
nem por emenda constitucional, como declara o par. 4º, inciso IV, do art.
60 da Lei Suprema, assim redigido: "Não será objeto de deliberação
a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV. os direitos e garantias individuais".
Como se percebe,
do ponto de vista estritamente constitucional, a vida começa
na concepção e assim é garantida por tratado internacional
e pelo Texto Maior, não havendo, pois, como admitir a possibilidade
de legislação válida sobre o aborto no direito
brasileiro.
A tese de que
a vida humana começaria no terceiro mês de gestação,
sendo antes uma vida animal, não resiste, pois, à Lei Suprema,
como entendo também não resistir às leis biológicas.
Jerome Lejeune,
membro da Academia Francesa e que ofertou notável contribuição
na detectação da síndrome de Down, certa vez foi questionado,
em programa de televisão inglesa, se considerava correta a lei daquele
país que permitia o aborto até o terceiro mês de gestação,
pois o feto ainda não era um ser humano. Respondeu o famoso médico
que aquilo era um problema dos ingleses. Se eles entendiam que a rainha da
Inglaterra fora um animal irracional durante três meses e somente após
90 dias teria adquirido a conformação de ser humano, preferia
não interferir, por uma questão de diplomacia, nas convicções
do povo inglês. Ele, pessoalmente, entretanto, estava convencido de que
sempre fora um ser humano, desde a concepção.
A verdade é que, sob a ótica biológica, todos nós
temos, desde a concepção, todas as características que
ostentaremos até a morte e, no plano jurídico, a vida é protegida
desde a concepção pela Carta Magna brasileira.
Por tais motivos,
qualquer lei ordinária que venha legislar sobre o
aborto, pretendendo torná-lo admissível no Brasil, será manifestamente
inconstitucional, podendo ser objeto de ação de controle concentrado
de constitucionalidade na Suprema Corte, passível de ser proposta por
qualquer das entidades legitimadas no art. 103 da Lei Maior brasileira -controle
esse, entretanto, segundo a jurisprudência do Pretório Excelso,
impossível de ser exercido sobre o artigo 40 do Código Penal
de 1940, pois, sendo lei anterior à Constituição de 1988
e incompatível com ela, encontra-se, nesse aspecto, revogado.
Ives Gandra da Silva Martins, 68, advogado tributarista, professor
emérito
da Universidade Mackenzie e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente
do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio
do Estado de São Paulo.
Veja:
http://www1.folha.uol.com.br
|