O referendo que não houve


10/04/2007

José Carlos Sepúlveda da Fonseca

Igreja: atitude dúbia que gerou incerteza nos católicos


O Cardeal Patriarca de Lisboa, em nota aos padres sobre o referendo, alertava que a missa não podia ser lugar de campanha

Não se pode afirmar que houve uma clareza inequívoca de posições e uma firmeza inconteste de atitudes na atuação da Hierarquia católica. Sua intervenção foi, infelizmente, marcada por uma discrição que lhe valeu até elogios de alguns defensores do SIM; e por atitudes desconexas que causaram perplexidade em muitos fiéis.

Segundo afirmou D. Carlos Azevedo, porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), houve uma estratégia preparada com a orientação da CEP, “de que o debate fosse sereno, moderado e sem extremismos de posições”, voltado apenas para o esclarecimento das consciências. A Igreja não devia se imiscuir na disputa eleitoral, cingindo-se a relembrar a doutrina sobre o valor da vida humana como dom de Deus, contra a qual nenhuma decisão é legítima e honesta.

Ora, como já se referiu neste artigo, em sua ardilosa propaganda os partidários do SIM também alegavam a defesa do valor da vida. Não bastava, pois, relembrar o respeito aos valores da vida humana e deixar o voto à consciência de cada um. Era mister que a voz esclarecedora dos pastores da Igreja alertasse os fiéis para os inúmeros engodos com que, concretamente, se tentava fazer aprovar a prática do aborto livre em Portugal.

O Cardeal Patriarca de Lisboa, talvez a figura eclesiástica mais controvertida nesta campanha, foi além. Em nota aos padres sobre o referendo, alertava que a missa não podia ser lugar de campanha.

Esta posição oficial não foi compartilhada por todos os bispos portugueses nem por todos os sacerdotes. Diversos deles foram taxativos na orientação dada aos fiéis, da necessidade de votar NÃO. Cabe aqui destacar a posição assumida pelos bispos de Angra e Ilhas dos Açores, D. Antonio Sousa Braga; da Guarda, D. Manuel da Rocha Felício; e de Bragança-Miranda, D. António Montes Moreira.

A par da discreta intervenção da Hierarquia, católicos reconhecidos como tal, até com posições de destaque no governo socialista, militavam abertamente pelo SIM. De modo incongruente, a mídia dava eco aos que sustentavam que os argumentos confessionais eram extremistas e obscurantistas, mas tratava com complacência e simpatia os católicos que diziam votar SIM: “Vou à missa e voto Sim”; “Sim pela ‘obrigação de imitar Jesus’”; “Pode ser-se católico e a favor da despenalização do aborto”; “São católicos e militam pela despenalização”.

O tom “moderado” da intervenção da Igreja; as vozes dissonantes de católicos; a farta propaganda midiática dos que “vão à missa e votam SIM”; a manobra demagógica de adeptos do SIM que diziam ser contrários ao aborto; a natural oposição de muitos fiéis a que a vida humana fosse referendada, levando-os naturalmente a abster-se — tudo isso lançou a incerteza entre os católicos. No panorama deliberadamente confuso do debate, poderiam eles encontrar razões válidas em sua consciência para votar SIM, NÃO ou abster-se. O resultado ficou à vista: ao analisar os resultados eleitorais, especialistas concordaram não ser possível identificar o voto católico.

O principal dirigente do partido da extrema esquerda, conhecido por suas posições hostis em relação ao catolicismo, no discurso de vitória do SIM agradeceu aos católicos o seu voto...

Estava tudo dito!

Referendo enganoso e inautêntico


Manifestação contra o aborto em Lisboa

Estavam lançadas as cartas para um referendo enganoso e inautêntico.

No dia 11 de fevereiro, os portugueses foram às urnas. Dos 8.832.628 eleitores inscritos, apenas 3.851.613 (43,61%) votaram. A abstenção somou 56,39% (4.981.015), fazendo com que o referendo não tivesse efeito vinculativo.

Dos que votaram, 59,25% o fizeram no SIM e 40,75% no NÃO.

Os 2.238.053 que optaram pelo SIM representam apenas 25,34% de todo o eleitorado. Desta minoria, muitos terão votado a favor da prática do aborto livre. Mas muitos também terão sido embalados pelas enganosas promessas de campanha, algumas das quais prometiam até a diminuição desta prática.

Assim é fácil perceber que faltava completamente legitimidade ao primeiro ministro socialista para levar adiante qualquer alteração da lei de liberalização do aborto. Entretanto, a manobra de forjar um apoio popular obtivera êxito. Agora era preciso correr, como exigia o líder da extrema-esquerda. Em poucas semanas, e desmentindo todas as falsas promessas de campanha, os socialistas, coadjuvados pelo Partido Comunista e pela extrema-esquerda, elaboraram uma lei de quase total liberalização do aborto.

Um enigma: a alta abstenção

Como explicar, em um ambiente público profundamente dividido, que só 43,61% dos eleitores tenham acorrido às urnas? Seria essa alta abstenção fruto do desinteresse, ou até mesmo da indiferença?

Em entrevista à agência católica de notícias, Zenit, o diretor de campanha de Ação Família afirmou a esse propósito:

“Há, é claro, uma parcela de pessoas alheadas do processo político, seja por desinteresse, seja por falta de formação.

“Uma outra parcela dos abstencionistas é composta de pessoas que ficaram confusas com as idas e vindas do debate que, ao tentar ocultar o que realmente estava em causa, muitas vezes mais confundiu do que esclareceu.

“Por fim, uma parcela ponderável dos que se abstiveram fê-lo por demonstrar incômodo ou até oposição aberta a que o direito à vida fosse levado a referendo. Entre estes últimos, estou convencido de que muitos terão sido cristãos. E esta oposição surda é um dos fatores que retira legitimidade à fraca vitória do SIM”.

Uma votação que não reflete o alto grau de mobilização

Uma discrepância sobressai entre o resultado da consulta referendária e a realidade observada na mobilização e empenho das forças engajadas de um e de outro lado.

Apesar de contar com o apoio maciço do Partido Socialista (partido no governo e majoritário no Parlamento) e com o apoio importante da máquina governamental, bem como de gozar da simpatia dos meios de comunicação social, o campo do SIM evidenciou uma capacidade de mobilização medíocre e consideravelmente inferior à do campo do NÃO, composto em sua grande maioria por elementos da sociedade civil.

Os adeptos do NÃO, contrariando as previsões da mídia, tiveram capacidade para organizar 15 grupos cívicos por todo o país, para atuar de modo oficial na campanha. Em contrapartida, os grupos pelo SIM não ultrapassaram os cinco. O número de assinaturas recolhidas para a constituição de tais grupos reforça esse contraste: enquanto os movimentos do NÃO somaram mais de 260.000 assinaturas os do SIM não ultrapassaram as 65.000.

Esse contraste é ainda mais gritante quando se analisam as manifestações de rua. Por diversas vezes os movimentos do SIM tentaram convocar manifestações de rua, as quais obtinham pouca adesão. A de maior projeção, duas a três centenas de pessoas. Os movimentos pelo NÃO organizaram uma Caminhada pela Vida em Lisboa que acabou por reunir mais de 15.000 pessoas.

Na verdade, estas diferenças parecem refletir com acerto a relação de forças entre aqueles que efetivamente apóiam a prática do aborto e os que a ela se opõem. De onde se conclui que a vitória do SIM não se deveu a um apoio da população à prática do aborto livre, mas ao êxito da manipulação demagógica já descrita

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