O referendo que não houve


10/04/2007

José Carlos Sepúlveda da Fonseca

Abortistas arrancam a máscara

“Num Estado de direito democrático, enganar os eleitores ou deixá-los no erro em que se encontram representaria mais do que uma estratégia ilícita de vitória. Esvaziaria de conteúdo a votação em causa, retirando-lhe até a pretensa capacidade de legitimar — ao menos no plano político — a mudança de lei que alguns propõem” (“Público”, 4-2-07). Esta advertência lançada pela assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Cristina Líbano Monteiro, exprime bem um dos principais fatores de ilegitimidade do referendo português. Ele se tornou vazio de conteúdo e de significado, e até fraudulento do ponto de vista das regras do regime democrático.

Na verdade, passadas poucas horas do referendo, as máscaras começaram a cair. Do campo do SIM partiam agora considerações bem diversas da cantilena ouvida durante a campanha. Portugal deixara de ser um país atrasado, o povo optara pelo aborto livre e as mulheres viam consagrados seus direitos. Numa evidente e maldosa torção da realidade, tudo o que cuidadosamente tinha sido escondido e até negado com veemência era agora proclamado como sendo o significado último da vitória do SIM.

Resumiu-o de modo conciso e objetivo, em artigo para a grande imprensa, o professor de Direito Constitucional da Universidade Nova de Lisboa, Tiago Duarte:

“Tantas vezes os defensores do sim repetiram que o que estava em causa não era o aborto livre a pedido da mulher, que acabaram por convencer a maioria dos eleitores que foram votar. [...]

“É inquietante verificar como a vitória do sim levou a que logo começassem a cair as máscaras dos que se tinham fingido moderados, iniciando-se a ‘trotskização’ dos verdadeiros moderados, que nunca mais apareceram. [...] Afinal o aborto tem mesmo de ser livre, para não se desrespeitarem os resultados do referendo, dizem agora os que andaram calados durante a campanha. [...] Afinal o aborto é mesmo um direito da mulher que não pode ser condicionada de forma nenhuma, dizem os que o negavam ontem”.

“É preciso dizer que o se está a passar assume os contornos de uma autêntica burla política, sobretudo para os que acreditaram no que lhes foi dito vezes sem conta e acabaram por votar sim” (Réquiem pelo “sim” moderado, “Expresso”, 3-3-07).

Igreja Católica: a grande derrotada

Mais ainda: os partidários do SIM afirmavam e repetiam sem cessar que a disputa se cingia ao campo do Direito Penal e da Saúde Pública, e que não envolvia a discussão dos valores da vida e menos ainda dos valores religiosos e morais, motivo pelo qual a Igreja se deveria manter afastada do debate, para não “radicalizá-lo”. Entretanto, após a vitória, esses mesmos adeptos do SIM, como que num passe de mágica, passaram a apresentar a Igreja como a grande derrotada do dia 11 de fevereiro.

A exigüidade deste artigo só permite dar aqui um exemplo. Um dos mais ativos propugnadores do SIM, Vital Moreira, professor de Direito Constitucional e Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, não poupou esforços para demonstrar que o que estava em causa era apenas o fim da “humilhação” das mulheres. Dois dias após o referendo, em artigo para a grande imprensa, no qual perfilava as velhas idéias do republicanismo laico e anticatólico herdadas pela esquerda, comentou a respeito da “expressiva vitória da despenalização”:

“Se quisermos singularizar o grande perdedor, o galardão não pode deixar de ser atribuído à Igreja Católica. [...]

“Desde a implantação da República a Igreja Católica não sofria uma derrota política tão profunda e desta vez diretamente das mãos do voto popular. Decididamente, ela deixou de comandar a consciência moral dos portugueses e as opções políticas do Estado. A separação entre o Estado e a religião deu um decisivo passo em frente. O Código de Direito Canônico deixou de ser lei constitucional entre nós” (“Público”, 13-2-07).

Uma lição a não ser esquecida


Juventude inconformada com a vitória do SIM

Não guardará uma lição para nós católicos a história deste referendo e a vitória do SIM em Portugal?

Por mais que o escondam, por mais que envolvam suas razões nas roupagens dramáticas dos casos concretos, o que verdadeiramente motiva os propugnadores do aborto é imprimir à sociedade uma transformação sectária. Por detrás dos sorrisos, da “moderação” e das falsas promessas de consenso está o desejo de extirpar das mentalidades e da sociedade a moral cristã, bem como de privá-las da ação benéfica da Igreja.

Triunfo da mentalidade relativista mesmo entre os católicos

Quantos terão pensado consigo mesmo “sou contra o aborto, mas não sou capaz de incriminar as mulheres que o praticam”; ou “não tenho dúvidas: sou contra o aborto, claro, mas votarei SIM no referendo, porque se há mulheres que o fazem, então que o façam em segurança”.

Estas frases (reais!) são a expressão do relativismo que, fruto de uma ação meticulosa e progressiva, vai carcomendo as resistências psicológicas e espirituais de muitos dos nossos contemporâneos, até mesmo entre os católicos.

Ação que de alguma forma atinge inclusive os católicos que se mantêm firmes e se empenham na defesa de seus valores sagrados, mas que nessa luta consideram inoportuno invocar os princípios católicos que os movem.

Assim se deu em Portugal, onde os analistas reconhecem que o grande dinamismo dos movimentos pelo NÃO deveu-se exatamente à mobilização dos leigos católicos (a maior em muitas décadas, segundo alguns!), os quais preferiram, entretanto, não utilizar em sua luta os argumentos confessionais, com medo de serem tachados de fundamentalistas.

Para os católicos portugueses se coloca, pois, um dilema: ou insistir nessa postura ou assumir seu catolicismo com toda a firmeza, opondo-se ao aborto, como às outras investidas contra a moral cristã, sem medo de denunciarem o vulto inteiro do adversário: ou seja o radicalismo sectário de uma minoria que visa extirpar da sociedade a influência benéfica da Igreja Católica e de sua moral, e substituí-la por uma “moral” laica, anticristã.

Advertências de Fátima

Diante deste quadro, tornam-se mais atuais do que nunca as advertências que Nossa Senhora fez em Portugal em 1917, há precisamente 90 anos. Sobre elas é necessário meditar e atender a seus pedidos.

E continuar a manter a certeza de que “por fim o Seu Imaculado Coração triunfará”. Triunfará dessa verdadeira conspiração de forças que impôs a Portugal — de modo fraudulento, diga-se mais uma vez — a prática do aborto livre. E que se apresta a impor ao Brasil, inclusive valendo-se do exemplo português, da mesma prática anticatólica de matança de inocentes!

Cabe aos católicos brasileiros, e a todos aqueles que se opõem a essa impiedosa cultura da morte, fazer uma frente única para desmascarar e frustrar tais ardis.

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