A ÁRVORE DE NATAL DO SENHOR D’AUVRIGNY
18/12/2007
Auvrigny é o nome de uma aldeia perdida nos confins das Ardenas, numa região isolada e bravia junto da fronteira com a Bélgica. Esse pequeno recanto da França, berço natal de todos os cesteiros, afastado das grandes vias de comunicação, manteve-se por muito tempo atrasado em relação ao resto do país. No princípio da Revolução Francesa, Auvrigny era uma aldeia de cinqüenta casas, a pouca distância de uma vasta casa conhecida como "castelo", habitada por um bom fidalgo provinciano, solteirão, muito agradável no trato e muito afável.
Desde tempos imemoriais a aldeia e o castelo mantinham entre si as melhores relações. O conde de Auvrigny era caridoso, os camponeses mostravam-se dedicados. À menor dificuldade recorriam ao senhor, que se encarregava de resolver amigavelmente as questões entre eles e se mostrava sempre disposto a intervir nos desaguisados com a administração das Águas e Florestas ou com os guardas do senhor duque de Orleans.
Sem pôr fim àquele bom entendimento, os acontecimentos da Revolução esfriaram um pouco as relações entre os aldeães e o senhor. As gazetas francesas não chegavam a Auvrigny, é certo. Aliás, teriam encontrado ali tão reduzido número de leitores, que a sua influência seria quase nula. No entanto, os “espíritos fortes” agitavam-se. Sempre havia contatos com a vila de Nouvions, e mesmo com Vervins, onde acabava de ser instalado o tribunal da comarca. Embora apenas de forma remota e vaga, a aldeia mantinha-se informada do que ia acontecendo em Paris.
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Na época das eleições, tinham vindo de Laon uns senhores de largos cinturões, empenachados como trombeteiros, que pregavam aos camponeses boquiabertos os benefícios da igualdade e a felicidade da independência. Diziam mais: que todos os nobres eram falsos como Judas e cruéis como o Barba Azul; mas os camponeses de Auvrigny só conheciam um, que sempre lhes parecera franco e generoso, de maneira que os discursos dos jacobinos de Laon não fizeram efeito por ali.
Quanto ao conde, nada mudara nos seus hábitos. Como era sensato e inteligente, absteve-se de emigrar. Não tendo nenhum direito senhorial a perder, não mostrou qualquer despeito quando da abolição dos privilégios. E ao ver que pouco a pouco os aldeães, que sempre tratara como amigos, por desconfiança ou por orgulho se desabituavam de vir consultá-lo, fez-se de desentendido e continuou como antes, vivendo à maneira de filósofo que nada espera de ninguém, e que a opinião alheia pouco afeta.
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Embora apenas de forma remota e vaga, a aldeia mantinha-se informada dos terríveis acontecimentos em Paris |
Estava-se no inverno de 1793, na véspera de Natal, e o conde de Auvrigny, fiel a um velho costume da região, mandara armar no vestíbulo do castelo um magnífico pinheiro cortado no seu parque e enfeitado de luzinhas, fitas, brinquedos e gulodices, alegremente pendurados nos ramos escuros. Era tradição as crianças da aldeia virem todos os anos, acompanhadas pelos pais, fazer a colheita daquelas maravilhas; em seguida o conde mandava distribuir uma suculenta merenda de bolos e doces. Os cestos das mães, que tinham vindo vazios, regressavam transbordando de provisões e de roupas confortáveis. Até os homens encontravam, na algibeira dos capotes, poeirentas garrafas de vinho ou cabacinhas de aguardente velha. Era uma festa que alegrava toda a gente dois meses antes, e que dava que falar depois até à Páscoa.
Ora, nesse ano desgraçado pela Revolução o conde entendera que não havia de renunciar à caridosa tradição, embora percebesse muito bem que, havia tempos, a desinteligência entre o castelo e a aldeia se ia cavando mais fundo. Nesse dia lembrara-se até de arranjar um lindo presépio, onde se via a imagem de cera do Menino Deus, deitado nas palhinhas, numa gruta de cortiça colocada à sombra da árvore de Natal, sob os grossos ramos que uma nuvem de farinha parecia cobrir de neve.
O velho fidalgo, que gostava de dirigir pessoalmente estes arranjos natalinos, dava os últimos retoques na sua obra quando ouviu baterem à porta do castelo. Imaginando que a impaciência de algum dos seus convidados o trazia antes da hora, apressava-se a acender as últimas velas quando o criado introduziu, em vez do bando de crianças que ele esperava, o regedor da aldeia, Gérard, e o seu adjunto, que se chamava Birou.
O conde estendeu-lhes a mão, que apertaram com certo embaraço. Conhecia-os a ambos de longa data. Gérard, camponês quase analfabeto, não era mau. Birou, pelo contrário, era invejoso, parlapatão e pretensioso. Sabia ler mais ou menos a “letra de forma”, e essa superioridade granjeava-lhe enorme prestígio aos olhos dos conterrâneos. Conseguira ser admitido no clube dos jacobinos de Guise, e acabava até de se fazer assinante de uma folha revolucionária, que lá ia decifrando mal-mal, sem perceber patavina. Era ele que dava ordens na comuna; fora ele, igualmente, que conseguira inculcar no espírito dos conterrâneos a idéia de que a sua dignidade de homens livres não lhes permitia manter relações com “o explorador dos pobres”, que era o conde. Deve-se dizer entre parênteses que Birou tratava o melhor possível esse mesmo senhor, pois era naturalmente obsequioso, e pensava com prudência que não se podia prever “que volta levariam as coisas”...
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