A ÁRVORE DE NATAL DO SENHOR D’AUVRIGNY


18/12/2007


— Quando tiver tempo, Sr. Birou — respondeu o aristocrata — há de explicar-me por que a imagem de uma criança deitada nas palhinhas do presépio fere os seus sentimentos igualitários

Gérard e Birou apresentaram-se, pois, ao conde de Auvrigny, muito surpreendido com a inesperada visita. Birou lançou à árvore de Natal um olhar bastante escarninho, mas conteve-se. Gérard cumprimentou com acanhamento. Como o nobre lhes agradecesse por terem vindo antes de todos os conterrâneos, o regedor balbuciou:

— Oh!... Não é bem por isso que nós... Pois não, Birou?...

— Não, não — replicou Birou, com um risinho alvar. — Não é isso que nos traz aqui.

O conde convidou-os a entrar no escritório e a expor o motivo da visita, declarando-se pronto a escutá-los, enquanto não chegassem os convidados; mas Birou cortou de repente:

— Bom!... Para sermos francos, cidadão, os seus convidados não vêm.

— Como?!... Por quê?

— Lamento, lamento muito — apressou-se a acrescentar Birou. — O cidadão Gérard que diga a pena que tenho, mas eles pensaram... acharam...

— O quê? Acharam o quê?

— Que as circunstâncias não lhes permitiam, como patriotas, participar em certos atos manchados de espírito aristocrático.

Era uma frase de gazeta revolucionária. O conde mordeu os lábios.

— Ora, diga-me cá, Birou: acha que o que era bom há alguns anos pode hoje ser mau?

— Não, claro... O que eu queria dizer...

— A menos que a moral tenha mudado, como receio, será que temos o direito de criticar hoje o que aprovávamos ontem?


Birou lançou à árvore de Natal um olhar bastante escarninho...

Não se sentindo à altura de manter a discussão naquele tom, Birou esquivou-se e replicou com um dos argumentos que ouvira repetir no clube de Guise, e que aplicava a torto e a direito, sem lhe compreender o alcance:

— Deixemo-nos de discussões, cidadão: se a gente não vem aqui desfilar diante da sua árvore, é porque essa manifestação pueril revolta a razão e ofende a igualdade!

— Quando tiver tempo, Sr. Birou — respondeu o aristocrata — há de explicar-me por que a imagem de uma criança deitada nas palhinhas do presépio fere os seus sentimentos igualitários. Mas é melhor ficarmos por aqui. Tornaremos a falar da minha árvore de Natal quando os tempos forem menos confusos e as pessoas menos tolas. Oxalá este repúdio de um velho costume, de que os vossos pais tanto gostavam, não venha a trazer-vos infelicidade...

E, como a despedir os visitantes, acrescentou:

— Não tinham mais nenhuma comunicação a fazer-me?

— Perdão — disse Gérard — eu vinha consultá-lo sobre uma coisa muito delicada. Birou, que fala bem, mas fala demais, não me deu tempo para perguntar.

E o regedor explicou que, nos seus três anos de funções, fora se desembaraçando a contento da tarefa. Lembrou que muitas vezes, no princípio, viera pedir conselho ao conde. Depois se esforçara por valer-se do seu bom senso e das luzes do povo da comuna, mas daquela vez o caso era grave, tão grave que ele não vira remédio senão vir esclarecer-se junto do “homem mais instruído da região”. É que ele recebera na antevéspera, por intermédio do comissário do Comitê de Salvação Pública, intimação para organizar o mais depressa possível a lista dos suspeitos da comuna de Auvrigny.

— Ora — continuou — por mais que puxe pela cabeça, não sei o que é um suspeito. O Birou também não sabe. Consultei o Havard, o Desquesne, o Jendelle e o Rendon, as melhores cabeças da aldeia, e nenhum deles ouviu falar de suspeito. É palavra que não conhecemos. Então tirei-me dos meus afazeres e vim perguntar ao cidadão se sabe o que é.

O conde encarou rapidamente os seus interlocutores. Vendo que não havia neles sombra de malícia, e que o seu embaraço era real, volveu com toda a seriedade:

— De fato, suspeito é uma expressão nova, que eu também nunca tinha ouvido até há pouco tempo... Mas a que se destina essa lista que os senhores têm de organizar?

— Assim que esteja escrita, tenho de a mandar diretamente ao Comitê de Salvação Pública, que, como diz aqui na carta, “tomará imediatamente medidas adequadas”.

— Oh! Oh! A coisa é urgente, na verdade... Pois muito bem, meu bom Gérard, o que o Comitê lhe pede é simples: quer apenas saber os nomes de todos aqueles que nesta comuna se têm distinguido desde o começo da Revolução, pelo seu patriotismo e pelo seu ódio ao antigo regime.

Como notasse que Birou era todo ouvidos, o conde acrescentou negligentemente:

— É provável que a Convenção queira distribuir cargos e pensões. Suspeitos, em linguagem oficial, quer dizer aqueles que são suscetíveis de receber uma recompensa nacional.

— Era o que eu pensava — observou Birou.

— Não me surpreende, Birou. Como você me dizia no outro dia, “a República abateu a hidra do fanatismo e triunfou sobre todos os seus inimigos”. Por conseguinte, só lhe resta agora pensar nos amigos e, como vêem, não os esquece... Só tenho uma mágoa: é não poder figurar nessa lista de honra.

— Ora!... — insinuou Gérard, magnânimo. — Se tem tanto empenho nisso...

— Não! De maneira nenhuma! O meu nome de aristocrata só podia prejudicá-los perante o Comitê. E além disso nada fiz para merecer figurar ao lado daqueles que, como vocês, se bateram pela liberdade.

O regedor parecia imensamente atrapalhado:

— Então, como há de ser? Na tal lista de suspeitos (diacho de nome!) vou já plantar o Birou...

— Excelente idéia! Ponha-o logo no início... Então, então — acrescentou o conde, voltando-se para Birou, que esboçava um protesto afetado — deixe-se de modéstia. É mais do que justo. Olhe, Gérard, sente-se a essa mesa e escreva: Lista dos Suspeitos da Comuna de Auvrigny...

O camponês, com a pena apertada nos dedos grossos, traçava em caracteres enormes as palavras que ia soletrando a meia-voz. E aplicava-se tanto, que tinha a testa perlada de suor e a ponta da língua entre os dentes. Finalmente, lá conseguiu levar a empresa a bom termo.

— Pronto! Cá está o título. Agora os nomes: Birou primeiro; depois, quem mais há de ser? Não posso pôr só um... É uma miséria.

— Claro — aprovou o conde. Até parecia que estava a regatear. — Mas olhe lá, ainda há pouco citou o Havard, que
grita “fora com ele!” quando eu atravesso a aldeia. Esse é dos bons. E o Rendon, que me apanha os faisões que pode, a pretexto de que os coutos já acabaram. Aí tem você outro fervoroso partidário do novo regime. Olhe, o Jendelle, que derrubou a cruz do cemitério. O Desquesne, que nos trata a todos por tu e não tira o chapéu, porque acha que a boa educação é inimiga da liberdade. Aí tem uma boa quantidade deles, que têm dado garantias ao novo regime.

Gérard ia escrevendo os nomes que o conde citava. Quando acabou, levantou a cabeça com ar satisfeito e arriscou:

— E se eu pusesse também o meu nome?

— Não o aconselho, Gérard — respondeu o conde. — Tem de assinar a lista como regedor da comuna, por isso é mais conveniente não se indicar a si próprio.


Em Paris os “suspeitos” eram condenados em juizos sumários

Embora um pouco desconsolado por não figurar na lista dos suspeitos, o regedor de Auvrigny mandou-a nessa mesma noite ao Comitê de Salvação Pública. Na aldeia espalhara-se a notícia do acontecimento. Birou não pudera calar-se, gabara-se de que em breve os senhores desse comitê o chamariam a Paris para lhe conceder uma recompensa — talvez

dinheiro, ou um bom lugar, acompanhado de uma coroa cívica. Por isso não faltou quem o invejasse quando, certa manhã, a casa do adjunto foi invadida pela guarda de Nouvions, sob o comando de um agente do Comitê de Segurança Geral. Fez subir Birou para uma berlinda, em cujas portas se distinguia ainda, apesar de muito raspado, o escudo de armas com as flores-de-lis da casa de Orleans. Jendelle e os outros foram também levados, e nessa noite, à ceia, Gérard não pôde conter um suspiro ao dizer para a mulher:

— Se o conde me tivesse deixado fazer o que eu queria, também eu iria com eles a estas horas, a caminho de Paris...

— É para aprenderes a não confiar nos conselhos de um aristocrata!

Gérard, amuado, não tornou a pôr os pés no castelo. O conde, por seu lado, também nunca ia à aldeia. Mas um dia que teve de ir ao ferreiro, estranhou o aspecto deserto e silencioso das ruas. Vendo um velhote, que o saudava à moda antiga, perguntou-lhe o que significava aquilo.

— Ah, senhor conde! Já não há homens válidos na aldeia. Como o senhor sabe, o governo mandou pedir os nomes dos que haviam de receber recompensas, e o regedor indicou cinco, que foram logo chamados a Paris. Mas os outros, quando viram aquilo, nunca mais sossegaram, insistindo para serem propostos, e o Sr. Gérard teve de redigir segunda lista dos suspeitos de Auvrigny, onde meteu quase todo mundo. Nem sequer resistiu à tentação de lá se inscrever também. De maneira que um dia veio aí a brigada toda de Vervins com um grande carro, onde empilharam os nossos homens. Há seis

semanas que para lá foram, todos a rir e a cantar, mas o tal lugar que lhes deram deve ser de muito trabalho, porque ainda não houve nem um que desse notícias...

* * *


E no castelo do Conde, os natais sempre foram como todos os anos...

E foi assim que o conde de Auvrigny, aristocrata da gema, se desembaraçou de vizinhos desagradáveis e viveu sossegado no seu castelo durante todo o período do Terror, enquanto os seus camponeses, com mais alguns dez mil, tão perigosos e tão culpados como eles, enchiam as cadeias de Paris.

Quando veio o Termidor, o fidalgo fez tudo o que pôde para obter a liberdade dos presos. Mas nesse período eram tantas as injustiças a reparar, que os meses iam passando e ele nada conseguia.

Transformara-se no pai adotivo da aldeia, onde só restavam velhos, mulheres e crianças. Tinha sempre a mesa posta e a bolsa aberta para aquela pobre gente, que não dava um passo sem o consultar, e que o considerava a sua providência. Auvrigny voltara aos velhos tempos de antes de 1789, quando a aldeia e o castelo confraternizavam. Os camponeses, não tendo outros recursos senão a generosidade do senhor, voltaram a chamá-lo "senhor conde" e respeitavam-lhe os faisões. Ele, por seu lado, continuava a não dar mostras de surpresa ante as sucessivas reviravoltas que o espírito da população ia sofrendo a seu respeito.

Notou-se apenas que, ao aproximar-se o inverno, fez várias viagens a Paris. O motivo dessas peregrinações tornou-se claro quando, alguns dias antes do fim do ano de 1794, começaram a chegar a Auvrigny, de orelha murcha, um a um, os suspeitos que dali tinham partido tão gloriosos alguns meses antes. Mostravam-se muito reservados quanto aos pormenores da sua aventura, de que aliás não percebiam grande coisa. Mas não poupavam louvores ao conde, que dera provas de um zelo infatigável para os tirar da cadeia.

Por isso houve grande afluxo de gente no castelo, naquela véspera de Natal. O conde, no entanto, não fizera convites. A costumada árvore de Natal, ainda mais carregada de surpresas do que habitualmente, fora armada apenas, ao que parecia, para sua satisfação pessoal. Estava ali a aldeia em peso, respeitosa, cheia de gratidão. E como o regedor Gérard se conservava modestamente atrás do povo, o fidalgo foi buscá-lo pela mão e o trouxe para perto.

— Ah, senhor conde! Se eu lhe tivesse dado ouvidos! Mesmo assim o senhor sempre nos pregou uma destas lições!...

— E não ficou zangado, Gérard?

— Nada, senhor conde. Se eu naquela altura tivesse sabido de fato o que era um suspeito, o que eu ia pôr na lista era o senhor, e só o senhor. Teria feito essa asneira. Quando penso nisso, até sinto calafrios.

— Por quê?

— É que eu bem vi como as coisas se passaram! O senhor conde, se lá tivesse ido, nunca mais voltaria. Mas, naquela confusão, não ligaram nenhuma importância a nós, camponeses. Só o Birou...

— O Birou?...

— O senhor conde sabe... aquele “espírito forte”... Ele tanto fez, tanto protestou, alegando que tinha direito a uma recompensa e exigindo um cargo, que resolveram recompensá-lo, e foi incorporado na 12ª Brigada. Agora é cabo no Regimento de Caçadores de Gevaudan.

Como se encontravam ambos junto do presépio iluminado, Gérard, apontando ao fidalgo os rostos extasiados das crianças, que passavam de mão em mão os brinquedos tirados da árvore, acrescentou:

— Olhe, senhor conde, estou certo de que o Birou daria as divisas todas para estar aqui esta noite conosco...

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(*) Texto extraído da obra Lendas de Natal, do autor francês G. Lenôtre, traduzida para o português pela editora Verbo, Lisboa, 1966.

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