100 dias de governo — mudanças, ambigüidades e expectativas


08/06/2011

Plinio Vidigal Xavier da Silveira

Decorridos os primeiros 100 dias do governo Dilma Rousseff, muitos se perguntam: o que pensar? Que houve mudanças em relação ao período do presidente Lula é inegável. Qual o alcance delas? São apenas de estilo ou atingem o cerne da política brasileira?


Dilma e Lula desmentiram que estivessem rompidos. Agora os marqueteiros dela torcem para que ocupe a metafórica “cadeira da rainha”...

Tropeçamos a todo momento na mídia — tanto a brasileira como a estrangeira — com afirmações do seguinte teor: “A nova presidente do Brasil, Dilma Rousseff, adota um estilo de governar e uma política totalmente diferentes dos adotados por seu antecessor Lula”. Tal apreciação vai tão longe que já se chegou com certa insistência a dizer que Dilma e Lula estavam rompidos, afirmação prontamente desmentida por ambos.

O que pensar dessa tão apregoada mudança? Já vai longe o tempo em que se tomava a mídia como um oráculo infalível. Hoje podemos questioná-la, confrontá-la com a realidade, analisar suas posições, refletir sobre elas. Isso é salutar.

O cansaço com o governo Lula

A primeira providência é separar o estilo Dilma da política Dilma. Sem negar que por vezes ambos se relacionam, o estilo é mais sujeito à ação de marqueteiros, que visam impressionar favoravelmente o público.

A imagem de Lula estava muito desgastada. A popularidade que lhe atribuíam os institutos de pesquisa, quando existia, se baseava o mais das vezes na distribuição maciça do dinheiro público através de “bolsas”, “cestas básicas”, “créditos”, “assentamentos” etc.. Além de ele ter-se revelado piadista engraçado num país onde todos gostam de rir. Mas não é essa propriamente a figura desejada para um chefe de Estado, o qual, pelo contrário, deve simbolizar os aspectos mais elevados da Nação, espelhando os anseios profundos da população.

Começava assim a pronunciar-se no brasileiro um fastio da vulgaridade, um cansaço com certa rotina política de tipo botequineiro. E, por detrás desse cansaço, levantava-se imperceptivelmente, como uma nuvem dourada, um desejo de seriedade de espírito, de elevação de alma. Esse não é o panorama todo, mas é um traço importante dele, que se omitido leva a incompreensões graves a respeito do momento em que vivemos.

Apontado como o marqueteiro por excelência da presidente, João Santana é publicitário muito hábil. Prova-o, entre outros, o fato de que uma prestadora de serviços de seu grupo conduziu pesquisa para o candidato vencedor do primeiro turno das eleições presidenciais peruanas, o pró-chavista Ollanta Humala. Este, em fevereiro, participou do congresso comemorativo do 31º aniversário do PT e desde janeiro é assessorado por dois militantes petistas. O próprio Santana esteve no Peru e, convidado a assumir oficialmente a campanha de Humala, declinou.1

Pois bem, João Santana parece ter estudado a fundo a psicologia do brasileiro de hoje, de modo a fazer com que sua presidencial pupila seja bem aceita pela opinião pública.

Aproximação com a Princesa Isabel


No campo da política externa foi cantado em prosa e verso o voto favorável do Brasil ao envio de um relator da ONU ao Irã para investigar a situação dos direitos humanos naquele país

O fenômeno, aliás, não é novo. Nem provavelmente desconhecido de Santana. Durante a Revolução Francesa de 1789, decorridos apenas 10 anos da queda da Bastilha – marco inicial do período revolucionário –, os franceses já davam mostras inequívocas de estarem cansados de tanta demagogia e perseguição. Anseios pela volta do Antigo Regime começavam a florescer nas almas, e a possibilidade de um retorno à monarquia dos Bourbons era vista com pavor pelas hostes revolucionárias. Daí a necessidade de lançar na trama política da época a figura de Napoleão Bonaparte. Ao mesmo tempo em que se apresentava como imperador e deixava para trás a República corrupta de 1793, o corso se esmerava na aplicação dos princípios revolucionários na França e em toda a Europa.

Com muita sagacidade de observação, João Santana explica o que realmente está no fundo da alma brasileira: “Há na mitologia política e sentimental brasileira uma imensa cadeira vazia, que chamo metaforicamente de ‘cadeira da rainha’, e que poderá ser ocupada por Dilma. A República brasileira não produziu uma única grande figura feminina, nem mesmo conjugal. Dilma tem tudo para ocupar esse espaço. O espaço metafórico da cadeira da rainha só foi parcialmente ocupado pela princesa Isabel”.2

O lançamento de um new-look psicológico para a presidente parece assente: “Um ministro que participou dos dois governos, e que pediu para não ser identificado, conta que a diferença de estilos de Lula e Dilma não acontece por acaso. Segundo este auxiliar, Dilma investe numa imagem própria, para evitar comparações com Lula. Citando frase de João Santana, o ministro diz que a ideia é fazer com que Dilma ‘ocupe o espaço imaginário de uma rainha’”3

Consoante com o novo figurino tem prevalecido na mídia e nos mais diversos círculos, a imagem de uma governante discreta, ponderada, com larga capacidade administrativa e que sabe gerenciar o País.

Ambigüidades a serem esclarecidas

No que tange à política governamental, a situação não é bem a mesma, sendo ambíguos os sinais emitidos pelo Planalto. Em artigo intitulado “Governo cinzento”, o jornalista Marco Antonio Villa escreve:

“A presidente Dilma completou cem dias de mandato. É vista como um verdadeiro fenômeno. Elogiada por todos, até pela oposição. Todos louvam sua habilidade política e a capacidade gerencial. Alguns lamentam ter votado na oposição, tão eficiente é a sua gestão. Contudo, ninguém consegue identificar algo relevante realizado pela presidente nestes cem dias. O que ela realizou de tão brilhante? Quais os projetos apresentados? E os resultados daqueles desenvolvidos desde 2003? Ninguém sabe, ninguém viu. Pior, o governo revelou incapacidade e inoperância administrativas raramente vistas no Brasil”. 4

No campo da política externa foi cantado em prosa e verso o voto favorável do Brasil ao envio de um relator da ONU ao Irã para investigar a situação dos direitos humanos naquele país. Os aiatolás do regime iraniano não gostaram, é claro. Mas o alcance desse gesto como mudança da política externa brasileira ainda é muito tênue. E traz consigo uma preocupação.

A presidente tem batido muito na tecla de que sua política a favor dos direitos humanos é irrenunciável. Se considerados os direitos humanos em tese, nada a objetar. Mas se nos lembrarmos de que o governo Lula deixou como herança um abominável Programa de Direitos Humanos (PNDH-3) que avança contra a família, favorece a união civil de homossexuais e a adoção de crianças inocentes por eles, qualifica o aborto como problema de saúde pública, profissionaliza a prostituição, golpeia a fundo o direito de propriedade e conduz veladamente a uma verdadeira perseguição religiosa, perguntamos: por que esse monstrengo chamado PNDH-3 não é definitivamente revogado?

Instituído por um decreto, o PNDH-3 pode ser revogado por outro decreto. Entretanto, aí permanece ele, de momento inativo, mas como um fantasma ameaçador que a qualquer momento pode lançar-se contra o Brasil e os brasileiros. Tanto mais que é notório o desejo de várias ministras do governo de implantá-lo desde já, e que só não o fazem por conveniências de momento.

Outro ponto em princípio favorável à política inicial do governo Dilma Rousseff é o esvaziamento da Reforma Agrária. Alertada durante décadas pela lúcida e incansável atuação de Plinio Corrêa de Oliveira e seus seguidores quanto às falácias do agro-reformismo, a opinião pública foi abrindo os olhos para os aspectos profundamente maléficos da Reforma Agrária, sobretudo em relação aos pobres. As desapropriações desastrosas e injustas, bem como a criação em série de assentamentos de miséria, parecem estar chegando ao fim, ou pelo menos declinando, por força da repulsa da opinião pública.

Entretanto, também aqui, por que não revogar de vez as leis de Reforma Agrária, que sucessivos governos demagogicamente promoveram? A atual administração tem larga maioria na Câmara e no Senado. Por que deixar o Brasil sob a ameaça desse entulho legislativo inadequado e pernicioso? Tanto mais que, a pretexto de ecologia, busca-se agora produzir o mesmo efeito nefasto antes visado pelo sistema de luta de classes do MST e congêneres.

Inalterada a política de estatização


Dilma é a continuidade da política de estatização. O presidente da companhia Vale do Rio Doce não se alinhava às diretrizes governamentais e a presidente exigiu a sua substituição.

Um dos aspectos mais preocupantes do governo Dilma é a continuidade da política de estatização. Sua exigência em substituir o presidente da companhia Vale do Rio Doce pelo fato de este não se alinhar às diretrizes governamentais mostra bem a ânsia da atual administração de tornar subserviente a iniciativa privada.

Para a comentarista econômica Miriam Leitão, a intervenção governamental na Vale “é um dos mais indecorosos sinais de retrocesso da economia brasileira [...] O espantoso é o sinal dado de estatização e a interferência do ministro da Fazenda. [...] Uma conversa do ministro da Fazenda [com o presidente do Bradesco] pedindo a cabeça do principal executivo de uma empresa privada é absurdo. [...] o governo vem tentando capturar a Vale para a roda das nomeações políticas. É uma re-estatização, na prática. [...] Essa intervenção, se consumada, vai mostrar que a empresa tem um gravíssimo problema de governança, já que voltará na prática a ser estatal. Se o governo for bem sucedido no primeiro momento, depois virão os outros cargos, as chefias intermediárias e aí a Vale vai se tornar um bom e apetitoso pasto para os indicados políticos como são os Correios, o sistema Eletrobrás, principalmente Furnas. [...] O que o governo quer é um assalto à Vale”.5

Com inegável verve, também a jornalista Dora Kramer alerta: “Ao molde do socialismo moreno inventado por Leonel Brizola, o PT inventou um capitalismo à moda da casa pelo qual empresas privadas têm controle estatal. Ainda que a Vale não sofra qualquer solução de continuidade em sua condução, a saída de Roger Agnelli, tal como foi feita indica que a maior exportadora do Brasil, dona de um lucro de R$ 30 bilhões, é suscetível a interferências de governo”.6

E no que vai dar a tal “Comissão da Verdade”, que o governo e a esquerda tanto querem ver aprovada? Que inquietações, que traumas ela trará para o Brasil? A desconsideração da lei da Anistia, ao menos em certos casos, já tem o voto do atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, do PT. Ele foi enfático a respeito: “Não há anistia jurídica àqueles que cometeram delitos em nome do Estado, mas a decisão judicial [do STF] tem que ser aguardada”.7

Expectativa


José Eduardo Cardozo (Elza Fiuzza / Abr)

Essas interrogações não esclarecidas nos levam à convicção de que, decorridos estes primeiros 100 dias de governo, importa não considerar apenas os sinais evidentes de mudança de estilo: cumpre permanecer atento às ações concretas que venham a ser realizadas, como também às omissões gritantes. Por exemplo, a não revogação do PNDH-3.

Desejamos ardentemente que a atual presidente desenvolva um governo anti-socialista voltado para a harmonia das classes sociais, respeitoso da propriedade privada e da livre iniciativa, bem como dos princípios morais que regem a conduta humana.

Mas seria ingênuo desconsiderar que ao comemorar seus 31 anos de existência (10-2-11), o PT, partido ao qual ela pertence, divulgou uma resolução em que diz expressamente: “O terceiro governo democrático e popular [Dilma] será o da continuidade e do aprofundamento da grande transformação iniciada há oito anos no País pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva”.

Nossa posição, pois, é de expectativa.

__________
Notas:
1. Cfr. Catia Seabra, in Petistas cuidam de ‘Chávez peruano’ – “Folha de S. Paulo”, 4-4-11.
2. “Folha de S. Paulo”, 6-11-10.
3. http://blogs.abril.com.br/blogdojj/2011/01/rainha-dilma.html
4. “O Globo”, 5-4-11.
5. Idem, 23-3-11.
6. “O Estado de S. Paulo”, 6-4-11.
7. Idem, 19-3-11.

Veja:
Revista Catolicismo

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