V Fórum Social Mundial


17/03/2005

Gonzalo Guimaraens

 “Diversidade”, “revolução intersticial” e pesadelo anárquico. Uma radiografia atualizada do “movimento de movimentos”alterglobalista, suas metas, suas discussões eestratégicas, seu poder real e suas ameaças.

OV Fórum Social Mundial (FSM), ocorrido em Porto Alegre entre os dias 26 e 31 de janeiro último, apresentou-se como uma “nova superpotência emergente”, a maior articulação de movimentos de esquerda dos cinco continentes, sob a bandeira de uma ambivalente “diversidade”.

“Este foi o Fórum dos Fóruns, um encontro superlativo, sobretudo por representar a vitalidade da esquerda mundial”, disse o coordenador geral do FSM, o brasileiro Jéferson Miola. E um influente órgão de imprensa brasileiro qualificou o FSM como “o maior lobby da Terra”. Exageros à parte, seria fugir da realidade, e cair no extremo oposto, negar a importância do FSM enquanto preocupante rede revolucionária com ramificações no mundo inteiro, mediante sua função catalisadora e dinamizadora das esquerdas. Contribuindo para empurrar a sociedade atual rumo ao mundo anárquico “profetizado” por Karl Marx.

O V FSM em cifras

Houve 155 mil participantes inscritos, de 135 países dos cinco continentes, incluindo 6.823 jornalistas. Efetuaram-se 2.500 conferências, promovidas por 6.588 organizações (ONGs). As atividades concentraram-se no chamado Território Social Mundial, ao longo de 4 km da orla do rio Guaíba, com 150 mil metros quadrados de área ocupada por edificações e abrigos (em que predominavam tendas de lona), equivalente a 18 Maracanãs.

Os recados do frade dominicano Frei Betto

Frei Betto, frade dominicano, teólogo da libertação, ex-guerrilheiro, amigo e confidente do presidente Lula e do ditador Fidel Castro, foi uma das estrelas do FSM. Falando para jovens militantes do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ensinou-lhes como fazer nos próximos meses uma inteligente e bem calculada “pressão popular” sobre o governo Lula, de maneira a que este possa ir deslizando cada vez mais para a esquerda, alegando clamor popular. O frade explicou que Lula tem necessidade de “conquistar parcelas gradativas do poder, dentro da legalidade burguesa, como dizia Gramsci”; e que essa "conquista" progressiva do poder real só será possível se os "movimentos sociais" pressionarem o governo.

John Holloway e a “revolução intersticial”

O escocês John Holloway, sociólogo, professor da Universidade Autônoma de Puebla, México, um dos mentores intelectuais dos rebeldes zapatistas daquele país, abordou um tema teórico que foi dos mais debatidos neste FSM: pode-se mudar o mundo sem tomar o poder?

Holloway lidera uma corrente que, partindo de premissas próximas do anarquismo pós-moderno, afirma que a estratégia mais prática é ir levando adiante a transformação “nos interstícios, nas gretas e nos espaços que forem sendo abertos”; uma “revolução aqui e agora” que crie um “anti-poder dos subordinados”. Não se trata, esclareceu, de provocar “enfartes sociais” ou levantamentos violentos, mas avançar através da “revolução intersticial”: uma “multiplicação de insubordinações, de ‘nãos’ e de rebeldias existentes no mundo, algumas tão pequenas que quase não se percebem, outras tão grandes como o ‘argentinaço’ dos piqueteiros, as revoltas indígenas na Bolívia e no Equador, a rebelião dos zapatistas mexicanos e o próprio Fórum Social Mundial”.

Hugo Chávez “incendeia” o Fórum Social

O presidente venezuelano galvanizou as esquerdas políticas presentes no FSM, diante de milhares de participantes que agitavam bandeiras de Cuba, do MST e de “CheGuevara.

O clima criado em torno de Chávez foi quase messiânico, a ponto de ser este qualificado de “novo libertador” por Ignacio Ramonet, diretor do “Le Monde Diplomatique” e membro do Conselho Internacional do FSM. O ministro brasileiro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, ligado ao MST, saudou-o como “uma das maiores lideranças políticas da América Latina”. Chávez contribuiu com sua mensagem revolucionária para incendiar os debates do FSM. Temos que reivindicar o socialismo como projeto e como caminho”;para “romper com o imperialismo diabólico, só há o caminho da revolução”, foram as afimações de quem está sendo apresentado como o sucessor político de Fidel Castro.

Padre Torres: indígenas, “reserva espiritual”

Entre os 200 teólogos da libertação presentes no FSM, vários manifestaram sua esperança no indigenismo enquanto nova “força libertadora”. O sacerdote chileno Sergio Torres, um dos fundadores da Teologia da Libertação (TL), chegou a dizer que “os indígenas são uma reserva espiritual” e “até uma antecipação da sociedade futura”, pois estariam “muito perto dos sonhos de ecologistas e partidos verdes”. De maneira chocante, o teólogo chileno valorizou como uma vantagem dessas “tradições indígenas” o fato de que “não são tradições cristãs” contaminadas pela mentalidade conservadora.

Saramago tenta demolir o conceito de utopia

O escritor comunista português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, diante de mais de 10 mil jovens militantes de movimentos sociais e políticos, tentou demolir o conceito de utopia, investindo também contra a objetividade e a religião: “Eu não sou utopista; o conceito de utopia é inútil; se eu pudesse, riscava a palavra utopia dos dicionários; a objetividade não existe, todos somos seres subjetivos e tudo o que fazemos é subjetivo; fora de nossa cabeça, não há nada; toda religião é um conjunto de subjetivismos” – foram algumas das suas afirmações, diante da surpresa de muitos assistentes. Ao que parece, para Saramago a realidade nada mais é do que o sonho gnóstico dos antigos hereges.

Ignacio Ramonet e seu anti-utopismo


O V Fórum Social Mundial serviu de laboratório para um “outro mundo” autogestionário e anárquico, que, em certo sentido, já desponta

Ignacio Ramonet foi talvez mais longe do que o próprio Saramago: “Somos contra-utopistas” – proclamou –, porque “as experiências históricas mostram que todas as utopias terminaram mal”. De maneira análoga ao não-utopismo de Saramago, ele deixou claro que seu anti-utopismo “não quer dizer que tenhamos que abandonar proposições, visões e objetivos, mas sim que os militantes alterglobalistas devem desvencilhar-se de excessivas elucubrações e teorizações.

Inflexão no altermundialismo: anarquia política e religiosa?

No FSM constatou-se a influência crescente de posições de inspiração anarquista, que sustentam que é preciso desconstruir as antigas teorias religiosas e políticas, as quais estariam viciadas na sua própria essência, porque teriam sido geradas pela lógica e pelo raciocínio. Análogas críticas ouviram-se contra o poder estatal, que estaria corrompido na sua raiz, pela mera existência, no seu interior, de organização e hierarquias.

Esses debates parecem indicar no interior do movimento alterglobalista uma inflexão que deixa para trás a predominância do hiper-racionalismo, tão presente no marxismo-leninismo clássico e em certas formas de socialismo, rumo a um outro extremo, também profundamente falso, da negação do valor da razão como instrumento de análise e de conhecimento objetivo da realidade. No final desse caminho estarão maneiras novas de pensar, de perceber e de sentir similares à dos indígenas, que neste FSM chegaram a proclamar: “nós somos o outro mundo”.

Plinio Corrêa de Oliveira e o "tribalismo"

Com muita antecedência, foi o pensador brasileiro Prof. Plinio Corrêa de Oliveira quem vislumbrou e analisou, de maneira mais profunda, o problema da degradação progressiva do intelecto humano, rumo a uma sociedade com formas de pensar neotribais. Em seu livro Revolução e Contra-Revolução, o eminente autor explica que “o caminho rumo a este estado de coisas tribal tem de passar pela extinção dos velhos padrões de reflexão, volição e sensibilidade individuais, gradualmente substituídos por modos de pensamento, deliberação e sensibilidade cada vez mais coletivos. Nestes, a razão, “outrora hipertrofiada pelo livre exame, divinizada pela Revolução Francesa e utilizada até o mais exacerbado abuso em toda escola de pensamento comunista”, agora passaria a ficar “atrofiada e feita escrava a serviço do totemismo transpsicológico e parapsicológico”.

“Diversidade”: nova forma de totalitarismo?

O FSM serviu de laboratório para um “outro mundo” autogestionário e anárquico, que, em certo sentido, já desponta. Esse “outro mundo” apresenta como denominador comum uma enigmática e ambivalente “diversidade”, que parece ser um novo nome do caos. Diante desse ousado empreendimento, cometeria um erro de cálculo o observador que se limitasse a avaliar o FSM meramente por aspectos contraditórios, folclóricos e até ridículos de algumas de suas manifestações.

E não seria exagerado suspeitar que, nos primeiros esboços desse “mundo novo”, possa estar em germinação um tipo de “fundamentalismo” anticristão, capaz de desencadear pressões e até perseguições contra os que continuam tomando os Mandamentos da Lei de Deus como valores absolutos. Se for assim, que tipo de pressões poderão surgir dessa “diversidade” que parece querer substituir — ainda que temporariamente — guilhotinas, gulags e “paredões” por “hegemonias” asfixiantes, que por enquanto não matam corpos, mas envenenam almas?

Numa análise do V FSM, não é possível deixar de colocar tão delicadas interrogações, diante de problemas que poderão afetar de modo decisivo o futuro da humanidade.

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Notas:

(*) Para este artigo, o autor contou com a colaboração de Carlos Santa Cruz e Nestor Matihara.

Veja:
http://www.catolicismo.com.br/

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