Os que souberam dizer NÃO!
28/07/2005
W. Gabriel da Silva
Queda
da Bastilha” da Europa Unida: na França e Holanda, a Constituição
Européia recebeu um golpe fatal do qual muito dificilmente se recuperará.
Chamados a se pronunciar em 29 de maio sobre o tratado que
estabeleceria a Constituição da União Européia, os franceses responderam
com um vigoroso "não": 54,87% rejeitaram o tratado, contra 45,13%
que o aceitaram. Dois dias depois, em outra consulta popular, os holandeses
exprimiram recusa ainda mais contundente: 62% contra 38% dos eleitores desaprovaram
o tratado.
É interessante analisar os resultados,
segundo estudos das pesquisas de opinião.
O "não" foi pronunciado
em sua maioria por jovens, pequenos empresários, assalariados, pessoas
maduras de menos de 60 anos e a França rural em peso. A França profunda
votou "não" maciçamente, com exceção da Bretanha, Vendéia e alguns
departamentos isolados.
Votaram "sim" sobretudo
pessoas de mais de 60 anos, os mais bem situados na vida e os habitantes
das cidades maiores: Paris (66%) e Lyon (61%), Estrasburgo, Nantes e outras
capitais regionais. Mas ainda nesse setor da população houve exceções,
como Marselha (61% votaram "não"), as regiões operárias do norte
e da região parisiense. No total, o "não" foi proclamado com
empenho e clareza em toda a França.
Sacro
Império ou União Soviética?
Carlos Magno lançou a semente do Sacro Império, cujas glórias
foram rejeitadas pela Europa dos tecnocratas
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Esse
fato – a rejeição da constituição européia no referendo francês – como
deve julgado? O que significa esse "não"?
Ao
leitor brasileiro, acostumado a considerar a Europa o continente civilizado
por excelência, pode parecer
uma charada a recusa da União Européia. Pois, se cada
um dos países europeus — por exemplo, França, Itália, Áustria, Portugal,
Espanha, Alemanha — nos encantam com suas riquezas culturais e artísticas,
o conjunto não seria ainda melhor?
A
pergunta é compreensível. Tratando-se
de nações muitas vezes oriundas do mesmo tronco racial, correspondendo
a uma área de civilização com traços gerais muito afins, formadas por povos
irmãos, por que não pensar num continente constituído na harmonia da convivência
e dos princípios, como o foi em certa época o Sacro Império Romano Alemão?
Seria
tal situação sumamente bela.
Mas, neste início de século, não passa de uma ilusão. Pois o que acabamos
de evocar é a Europa cristã, fruto do preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor
Jesus Cristo e de sua santa Religião. A nova União Européia nega tão claramente
as raízes cristãs da velha e tradicional Europa, que os seus artífices recusaram-se terminantemente a incluir na sua constituição
qualquer menção explícita nesse sentido. E quem talvez exprimiu essa negação
do modo mais contundente foi o presidente Jacques Chirac, o principal punido
pelo plebiscito de 29 de maio.
Não! A nova Europa dos tecnocratas
nada tem a ver com as antigas glórias do Sacro Império Romano Alemão, cuja
semente foi lançada por Carlos Magno. Ao contrário, está mais próxima de
uma nova União Soviética, com sua nomenklatura burocrática, seu
regime tirânico, anônimo e omnipresente, pronta a pesar sobre o cidadão,
impondo-lhe obrigações socialistas. E tais imposições mexem a fundo com
a vida concreta de muita gente, suprime costumes e tradições seculares,
leva a padronizações obrigatórias, controles e ingerências que modificam
substancialmente as índoles nacionais.
Do
queijo pasteurizado à curvatura
da banana...
Decreto de "pena de morte" pela nova constituição européia
para o queijo époisse e todos os que como ele são feitos com leite
não pasteurizado
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Vejamos
um exemplo concreto. Há uns três ou quatro anos
travou-se acesa polêmica na França, porque as autoridades européias
proibiram que se empregasse leite não pasteurizado no fabrico de queijos.
Um dos queijos atingidos era o famoso époisse. Ora, muitos queijos
devem a especialidade de seu sabor justamente ao fato de não serem feitos
com leite pasteurizado. Eis por que o decreto de Bruxelas significa a morte
desses queijos.
Outro
exemplo é a agricultura. Na
França, diz-se que o agricultor é praticamente um funcionário do Estado.
Ele não planta o que deseja, mas o que o governo manda. Como se tal não
bastasse, acima disso pairam agora as diretrizes de Bruxelas. A intromissão
totalitária chega a tal ponto, que me disseram ser impossível comercializar
na Europa as bananas que não tenham uma determinada medida de curvatura! Banana
meio reta ou curva demais é proibida...
Só bananas com o tamanho e a curvatura decretados pela constituição
poderão ser comercializadas na Europa
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Até onde chegará esse espírito totalitário, quando aplicado aos serviços
de informação e contra-informação eriçados devido ao terrorismo? O Big
Brother de Orwell vai ficando ultrapassado...
Em
suma, terá o português de abandonar
seu caráter lusitano para assumir a frieza do escandinavo? O napolitano
melódico e teatral terá de tender para o holandês taciturno? O alemão raciocinante
terá de adaptar-se à mobilidade eslava? Será isso possível sem
cada um perder a própria identidade?
Pode-se
compreender o mal-estar de incontáveis europeus ante a construção de uma Europa hostil, na qual eles
não encontram o seu lugar natural.
Pânico
a bordo. Um tratado morto e enterrado
A prevalecer esse espírito totalitário, terá o veneziano (como
o gondoleiro acima) melódico e teatral de tender para o holandês taciturno?
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Do
ponto de vista político, o "não" da França, reforçado pelo da
Holanda, representa um "terremoto" cujo alcance vai muito além
das fronteiras desses dois países. Ele atinge toda a Europa. E não se limita
ao campo político, mas abrange também o terreno social e religioso.
Na
França, o "terremoto" de
29 de maio de 2005 evoca o sismo político de 21 de abril de 2002, quando
os eleitores puniram a esquerda socialista ao desclassificar no primeiro
turno do pleito presidencial o ex-primeiro-ministro Lionel Jospin. O golpe
foi tão duro, que este teve de se retirar da política, e o Partido Socialista
até hoje não encontrou substituto à altura das circunstâncias.
Como
um formigueiro que leva um pontapé,
correm os políticos desesperados em busca de seus alvéolos ou das larvas
perdidas. As várias tendências se dilaceram, e isso ocorre tanto à esquerda
como à direita. "O Partido Socialista está à beira da crise de
nervos", diz o revolucionário Montebourg. As divisões aprofundam-se,
as bases distanciam-se, as coisas complicam-se.
Em
conseqüência, a nau capitânia de
Bruxelas começa a fazer água. Ministros britânicos, Tony Blair à frente,
dizem que o tratado está em grande dificuldade e é preciso fazer uma pausa
para reflexão. O presidente italiano Silvio Berlusconi afirma igualmente
que a União precisa repensar certos aspectos da burocracia européia. Já se
diz até que o tratado está "morto e enterrado".
Um
sistema que não representa
os anseios da população
Lionel Jospin, à semelhança de Chirac, apóia o Sim em manifestação
do partido socialista. Em outras palavras, partidos políticos europeus
não defendem as idéias e muito menos os ideais que deveriam representar
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Se
a constituição européia morre, "é uma libertação", proclama
um editorial da revista norte-americana “Weekly Standard” de 29 de maio,
redigido antes de saírem os resultados do referendo. Para ele, os sistemas
políticos europeus são arrogantes e não representam os anseios da população.
Assim também a constituição: "Se ela morre, é a vida", comenta
outro conservador americano.
Em
outras palavras, os partidos políticos
europeus não defendem as idéias e muito menos os ideais que deveriam representar.
Na realidade, eles já não têm nem estes nem aquelas. Constituem um sistema
que só produz decepções, morte do espírito. A constituição européia é fruto
desse sistema.
Tal
realidade não escapou aos observadores
mais argutos, mesmo os insuspeitos de qualquer conservadorismo, como Gilles
Lapouge. Sobre o referendo, escreve ele:
"O
que aconteceu? Uma bofetada desferida por todo um povo em suas elites [políticas e midiáticas]. No fundo, nesse referendo, não
havia somente pró-europeus e antieuropeus. Havia sobretudo o establishment
político midiático de um lado, e de outro a população” (“Sim” perde
mesmo que ganhe, em “O Estado de S. Paulo”, 29-5-05).
A
análise do jornalista francês é verdadeira,
mas ele omite um dos elementos mais importantes na composição do establishment.
Este não é apenas "político-midiático" (ou seja, o governo, os
partidos, a mídia que os promove e sustenta). É também religioso. Ora,
bispos católicos empenharam-se claramente pela aprovação da constituição
européia, apesar de esta admitir o casamento homossexual (vide artigo anterior).
Não obstante essa lacuna, Lapouge
descreve bem o fenômeno:
"O
debate europeu cavou uma fissura, uma fissura que atravessa
de lado a lado toda a França,
da direita à esquerda, e isola os profissionais da política (da inteligência,
da comunicação, do poder, da fortuna...) daqueles para os quais a política
deve supostamente trabalhar. É nesse sentido, em primeiro lugar, que esse
referendo constituirá uma data na história da França: ele celebrará o
curioso momento em que se percebeu que a política desliza sobre o corpo
real da França como a água sobre as penas do ganso. Nada é mais perigoso
que esse descolamento entre os cidadãos e a política”. (O negrito é nosso)
Faltou
apenas ele dizer para quem é perigoso
esse descolamento. Ao que tudo indica, não é para os cidadãos.
Metáfora apropriada: cabeça
e cauda da serpente
É do mestre Plinio Corrêa de Oliveira a seguinte metáfora. A vida da serpente
se concentra em sua cabeça, a qual tem grande agilidade para dirigir o corpo,
que até certo ponto se confunde com a cauda. A cabeça imprime o impulso vital,
mas o movimento é feito pela cauda. Porém, se alguém separar a cabeça da cauda,
naturalmente a serpente morre. O "establishment político-midiático" europeu,
ao qual se une em boa medida parte do clero e toda a alta classe dirigente que
deseja impor a União Européia, corresponderia à cabeça da cobra. O resto da sociedade,
ao corpo ou à cauda.
Qualquer
semelhança com o descolamento
entre a política e os cidadãos, mencionado por Lapouge, não é mera coincidência...
Veja:
http://www.catolicismo.com.br/
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