Ocorreu no Brasil, no dia 23 de outubro último, o primeiro referendo
sobre o desarmamento realizado no mundo. Para grande surpresa do governo brasileiro,
da mídia e do clero de esquerda, 64% dos eleitores disseram NÃO à pergunta: “O
comércio de armas e munições deve ser proibido no Brasil?”.
Somente 36% foram a favor da proibição. A abstenção
girou em torno de 20%. Chamou a atenção que os votos em branco
e nulos somaram apenas 3%, porcentagem muito inferior à das últimas
eleições para o Legislativo e Executivo.
Os cientistas políticos e a mídia em geral manifestaram sua
surpresa, sem saber explicar o que se passou. Agora, com um certo recuo, é a
hora de fazer uma análise que possa explicar esse resultado.
Transição para a democracia
Retrocedamos um pouco no tempo. Em 1985, após 20 anos de governo militar
que se iniciara em 1964, por ocasião de um grande movimento popular
de repúdio à ameaça comunista, representada pelo então
Presidente João Goulart, o Brasil voltou a ter eleições
diretas para presidente. O primeiro presidente eleito a tomar posse foi Fernando
Collor, que derrotou Lula da Silva em 1989.
A partir de dezembro de 1992 (com o impeachment de Collor e
a posse de seu vice, Itamar Franco), os políticos armaram situações em
que a eleição presidencial — a partir de 1994 — sempre
se resolvia entre a social-democracia esquerdista do ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso e o populismo trabalhista da ultra-esquerda. Nas quatro eleições
realizadas — 1989, 1994, 1998 e 2002 — o atual presidente Lula
da Silva foi candidato pelo PT. Assim, nas três últimas eleições,
a alternativa apresentada era esquerda versus esquerda, ambas com acentuada
conotação marxista.
Foi essa situação que levou o deputado Raul Jungman, do antigo
e fracassado Partido Comunista Brasileiro (hoje PPS), a declarar em entrevista à rádio
CBN, em 24-10-05: “O pêndulo sempre esteve a nosso favor desde
o fim da ditadura. Ele sempre esteve de nosso lado. Ainda quando perdemos,
como foi o caso Collor, nós tivemos força para bloquear a agenda
dele e o Collor foi realmente ‘impeachado’, saiu do poder. Daí para
frente, Itamar somos nós, Fernando Henrique somos nós, o Lula
somos nós”.
A eleição de Lula
Em 2002 foram quatro os candidatos à presidência: Lula da Silva
(PT), José Serra (PSDB), apoiado pelo então presidente Fernando
Henrique, Anthony Garotinho (PDT), herdeiro de Leonel Brizola, e Ciro Gomes
(PPS). No segundo turno, o atual presidente Lula obteve 60% dos votos.
Uma campanha baseada no “Lulinha Paz e Amor” acabou elegendo o
líder sindical para a presidência da República. Na obtenção
desse resultado, foi decisiva a crença de que o PT, embora muito esquerdista,
era um partido sério, que lutou e continuaria a batalhar energicamente
contra a corrupção.
Durante o governo Lula, uma bem orquestrada propaganda de imprensa
tem apresentado dados indicativos de um sucesso econômico extraordinário, criando
a impressão de que o País vai às mil maravilhas. Isso
justificaria que o governo — apoiado pela CNBB e pelo MST — viesse
a promover com rapidez uma Reforma Agrária drástica, com invasões
de terras e graves ameaças aos fazendeiros em geral.
O Estatuto do Desarmamento
Em fins de 2003 o Congresso aprovou, sob enorme pressão política
do governo, projeto de lei que proíbe o porte de armas à população
em geral e restringe de modo substancial a legítima defesa dos homens
de bem. O próprio ministro da Justiça, o criminalista Márcio
Thomaz Bastos, afirmou que o Estatuto do Desarmamento visava tirar as armas
dos homens de bem, pois desarmar os criminosos é função
da polícia.
Passados dois anos da aprovação do Estatuto do Desarmamento,
as autoridades vangloriam-se de ter recebido quase 500 mil armas da população
civil. Estatísticas de pouca credibilidade foram alardeadas pela imprensa,
para dar a entender que a criminalidade diminuíra em função
dessa arrecadação de armas.
A propaganda do referendo
Marcou-se para o dia 23 de outubro o referendo para os eleitores
responderem se “o comércio de armas e munições deve ser proibido
no Brasil?. Na redação da pergunta, já se notava uma confusão.
A resposta SIM seria contrária ao comércio de armas e munições.
O NÃO significaria ser favorável a esse comércio. O SIM é NÃO
e o NÃO é SIM, como alguém o definiu.
A pergunta restrita à questão do comércio de armas e
munições se prestava ainda a outras confusões. Pois os
eleitores votariam, de fato, para revelar sua posição em relação
ao direito de um civil exercer a legítima defesa.
A propaganda eleitoral gratuita de rádio e TV a favor do SIM, durante
20 dias, tornou-se uma leviandade. Baseou-se em dois pontos principais: a)
declarações de artistas, políticos e empresários
favoráveis ao SIM; b) argumentação casuística-ridícula
do tipo "eu conheço uma senhora cujo filho faleceu vítima
de um disparo acidental feito por seu irmão menor...”
Os contrários ao desarmamento afirmavam que os governos vêm progressivamente
eliminando três direitos: à propriedade, a constituir uma família
cristã e à legítima defesa.
Reação conservadora
Um mês antes do referendo, segundo a mídia, as pesquisas indicavam
80% de eleitores favoráveis ao desarmamento. O resultado final inverteu
completamente o quadro: 64% votaram NÃO. A que se deveu essa mudança
tão radical? Seria simplificação inaceitável dizer
que foi somente resultado da propaganda eleitoral. Na realidade, outros elementos
precisam ser considerados, e parecem ter sido os decisivos:
Normalmente o eleitor escolhe entre candidatos –– João
ou José –– porque o cantor de sua preferência recomenda
o nome de um deles. Mas quando entra ideologia, tudo é diferente;
As acusações de corrupção contra o governo Lula,
e também contra alguns de seus adversários, encontraram os eleitores
insatisfeitos, cansados de escolher entre João e José sem acreditar
em nenhum deles;
Há quase 50 anos os eleitores brasileiros não têm possibilidade
de votar em um candidato presidencial que se oponha realmente à esquerda;
Uma opinião pública com as características intuitivas
do povo brasileiro viu-se na seguinte situação: aprovar todos
os últimos governos que vinham gradativamente socializando o País;
ou manifestar sua inconformidade com a crescente atuação de governantes
que interferem cada vez mais nos direitos individuais, de molde a implantar
no Brasil nova “experiência” socialista, repetindo situações
já fracassadas em outras nações.
Inconformidade com a esquerda
Análise mais profunda do que se passou parece conduzir inevitavelmente
a uma pergunta: estará crescendo no Brasil, de modo semelhante ao que
vem ocorrendo nos Estados Unidos, uma reação na população
majoritariamente católica vulnerada em suas convicções,
a qual reage de modo a manifestar sua inconformidade com o esquerdismo?
Analogamente poder-se-ia perguntar sobre o “NÃO” à Constituição
Européia, ocorrido em plebiscitos realizados na França e Holanda.
Representaria a busca da fidelidade daqueles povos às verdadeiras raízes
cristãs da Europa, e um protesto à indébita ingerência
de um Poder público europeu em cada país independente?
A análise dessas questões, com profundidade e sem paixão,
parece levar-nos a uma conclusão inevitável: os brasileiros manifestaram
sua inconformidade quanto a um sistema que lhes vem sendo imposto há décadas
e rejeitaram idéias anticatólicas e esquerdistas. Os políticos
deveriam entender o claro recado eleitoral que o referendo lhes passou.