Lições de meio século de resistência anticomunista
05/12/2006
Luis Dufaur
Hungria 1956–2006. 50 anos após o glorioso levante anticomunista,
o povo húngaro ainda luta por se libertar dos resquícios de socialismo
e de comunismo.
Quem vê a foto, poderia ser levado a imaginar, sobretuto se ela fosse
em preto e branco, que retrata uma cena de 1956. Não! Ela é deste
ano de 2006: numa avenida de Budapeste, um vetusto tanque soviético
T-34 avançou envolto em gás lacrimogêneo até ser
detido pela polícia. Sobre ele, jovens manifestantes bradavam “56,
56!” e slogans anticomunistas, agitando bandeiras que ostentavam o brasão
da Grande Hungria, com a coroa de Santo Estêvão.
O gesto foi duplamente simbólico. De um lado, representou a ufana lembrança
que guarda o povo húngaro do glorioso levante anticomunista de 1956,
afogado em sangue pelo exército russo. Mostrou também quanto
esse povo tem viva consciência de que o comunismo não é um
fantasma do passado, mas que em seu país, como no resto da Europa Oriental, é ativo
e perigoso. Até domina o Parlamento de Budapeste!
Premiê Ferenc
Gyurcsany, do Partido Socialista (ex-Partido Comunista) |
“Temos de queimar o comunismo”, bradava um estudante que, como
muitos outros, acampou dias a fio nas praças húngaras pedindo
a queda do governo socialista. O atual descontentamento teve como estopim declarações
do premiê Ferenc Gyurcsany, do Partido Socialista (ex-Partido Comunista).
Ele referiu-se ao país com insultos dos mais injuriosos, e confessou
cinicamente em reunião partidária retransmitida pela rádio: “Nós
mentimos de manhã à noite [para o povo]. Fizemos tudo em segredo,
para que não publicassem nada antes das eleições”.
Ultrajada e ludibriada, a Hungria clamou pelo afastamento do governo socialo-comunista
e o derrotou estrondosamente em recentes eleições municipais.
Mas, contra toda a evidência dos fatos e os mais comezinhos princípios
da moral, tal governo se recusa a desistir de seu péssimo intento de
consolidar o socialismo.
Para o descontentamento anticomunista deste ano ainda pesa o fato de que,
na Rússia, o velho esquema do império soviético está se
reconstituindo velozmente, em novos moldes. Vai ficando menos improvável
a perspectiva de a Rússia de Putin e seus colegas da ex-KGB tentar submeter
mais uma vez a Europa Oriental.
Heroísmo do Cardeal Mindszenty
marca a Hungria
O Cardeal
Mindszenty sai da prisão comunista, em outubro de 1956 |
O 50º aniversário da insurreição anticomunista húngara
traz à memória a figura do heróico arcebispo de Ezstergom
e primaz da Hungria, o Cardeal Joseph Mindszenty. Em 1956 ele foi retirado
do cárcere e o país inteiro vibrou, recebendo a bênção
desse herói da fé e da pátria.
Quando os blindados comunistas retomaram Budapeste, o Cardeal refugiou-se
na embaixada norte-americana. Ali começou uma outra fase de seu calvário
moral.
Monsenhor Casaroli |
Não podendo deitar a mão sobre ele, o comunismo desejava expulsá-lo
do país e colocar à frente do episcopado húngaro um prelado
disposto a coexistir com o regime ateu, e assim perpetuar a opressão
sobre a Igreja e a nação. Para isso, os comunistas apostaram
na única força que poderia remover o valoroso purpurado: a diplomacia
vaticana, engajada em diálogo com o Kremlin, conduzida pelo então
Mons. Agostino Casaroli, elevado posteriormente ao cardinalato. Era o reinado
de Paulo VI.
Em suas memórias, o Cardeal Casaroli nos apresenta o primaz húngaro “com
a tranqüila segurança de quem se sente investido de uma dignidade
solidamente radicada na História e no direito, embora menosprezada.
Com o rosto branco iluminado pelo fogo de dois olhos de aço, o cardeal
veio em nossa direção! Desde o trágico processo de 1949
ele pareceu a mim, como a tantos milhões de católicos e não
católicos, quase a personificação de uma indômita
grandeza de alma, irredutível face ao direito renegado e à dignidade
humana pisoteada”.(1)
Nesse encontro, como nos que se seguiriam, o cardeal-herói recusou
a pressão de Mons. Casaroli para abandonar a Hungria e fustigou o prelado
vaticano por compactuar com o comunismo. Na despedida, o príncipe primaz
convidou o visitante a repartir sua magra refeição. Mons. Casaroli
deu uma desculpa, e o gigante da resistência anticomunista aludiu — conta
o próprio Mons. Casaroli — a “uma preferência minha
pela mais suculenta mesa comunista... Esta queixa ou insinuação
de uma certa preferência para os patrões comunistas
da Hungria haveria de aparecer outras vezes nas minhas sucessivas conversações”.(2)
“Disposto a se deixar despedaçar antes que se dobrar — acrescentou
Mons. Casaroli — ele dava a impressão de uma lâmina de aço
inflexível, pronta ao choque sem exclusão de golpes, com uma
realidade igualmente determinada a não se deixar dobrar. [...] Parecia
clara a sua convicção de que seria inútil tratar com os
comunistas para obter qualquer melhoramento, que não fosse apenas aparente,
das condições da Igreja na Hungria. [...] A conclusão
lógica não podia ser senão um irremovível ‘Delenda
Carthago!’: não havia outra estrada para ajudar –– seja
o povo, seja a Igreja –– senão a eliminação
do regime comunista. O cardeal não calava esta sua inquebrantável
convicção e não deixava de exprimir um juízo muito
severo sobre o Ocidente. Sobre os Estados Unidos, mais concretamente: estes
haviam tido no fim da grande guerra a supremacia militar, graças também à posse
da arma nuclear; mas haviam consentido que a URSS impusesse seu império
político-militar e ideológico sobre muitas partes da Europa”.(3)
Tanques russos ameaçam húngaros |
Lições do cinqüentenário, mas não só para
a Hungria...
Hoje, quando no Leste europeu se adensam pesados presságios de um retorno
do comunismo sob novas formas, a grandeza moral da gesta do grande Cardeal
adquire uma dimensão profética. Ela projeta um admirável
modelo de conduta a imitar na eventual adversidade.
Cena do levante anticomunista húngaro de 1956
|
É perplexitante, mas o comunismo não foi julgado numa Nüremberg — o
que continua indispensável. Os crimes do comunismo permanecem impunes.
Antigos sequazes seuestão livres e agindo, muitos até com assento
em parlamentos. Dos ambientes católicos, impregnados do espírito
de coexistência e colaboração com o comunismo, não
vieram palavras confessando terem sido ludibriados pelos marxistas. Não
abandonaram o mal, para cuja vitória colaboravam, e não voltaram
as costas para os inimigos da Santa Igreja que cruelmente os enganaram.
Outra cena
do levante anticomunista |
Entretanto, na medida em que o descontentamento anticomunista
toma corpo nas ruas — e não só da Hungria —, parece avizinhar-se
o dia em que os povos clamarão por uma Nüremberg em relação
ao comunismo e cobrarão essas espantosas e inexplicáveis omissões
e colaborações de certos ambientes católicos.
______________
Notas:
1. Agostino Casaroli,
Il martirio della pazienza, Einaudi, Torino, col. Gli struzzi nº 520,
2000, Comandos completospp. 48-52.
2. Id., ibid.
3. Id., pp. 52-55.
Veja:
http://www.catolicismo.com.br
|