Para onde ruma a Rússia de Putin?
23/07/2007
Renato Murta de Vasconcelos
Com
o enriquecimento, devido sobretudo
ao gás e ao petróleo, a
atual Rússia de Putin vai assemelhando-se à antiga URSS, com o
retorno da KGB e do totalitarismo característico dos regimes comunistas
A queda do Muro de Berlim em 1989 e o posterior desabamento da estrutura gigantesca
e opressora da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS) deixaram patente aos olhos do mundo o tremendo grau de descontentamento
na opinião pública das nações subjugadas pelo
Kremlin. Pôde-se então constatar o índice espantoso de
pobreza material e de miséria moral a que as populações
do Leste haviam sido reduzidas por mais de cinqüenta anos de regime
comunista.
A partir de então, os países que recobraram sua independência
realizaram progressos vertiginosos, como a Estônia, a Letônia e
a Lituânia. Progressos materiais, proporcionados pelo restabelecimento
da livre iniciativa e da propriedade privada, pela devolução
total ou parcial de bens confiscados pelos comunistas e pelo intercâmbio
econômico com os países da Europa Ocidental. Progressos espirituais
e culturais, advindos da liberdade religiosa, do fim do patrulhamento ideológico
e do fato de a população poder reunir-se livremente, movimentar-se,
etc.
Nababescas fortunas em mãos da antiga nomenklatura
Moscou tornou-se
uma cidade de preços absurdamente elevados, onde os shopping
centers de grande luxo se multiplicam |
No âmbito interno da Rússia foi preciso, no campo econômico,
que ex-comunistas fizessem concessões ao mercado livre. Com as imensas
reservas de gás natural e de petróleo, a privatização
do moroso e esclerosado parque industrial — confiado às mãos
de antigos membros da nomenklatura ou de pessoas por ela apadrinhadas, bem
entendido — proporcionou um boom econômico sem precedentes. No
espaço de uma década, à maneira de cogumelos, surgiram
magnatas que, dentro em pouco, poderão rivalizar com as maiores fortunas
da Terra, como a de Bill Gates e a do xeque de Bahrein. Moscou tornou-se uma
cidade de preços absurdamente elevados, onde os shopping centers de
grande luxo se multiplicam, enquanto nas ruas o número de limusines,
Mercedes e BMWs supera facilmente o de qualquer grande cidade alemã.
Hoje a Rússia é o maior produtor de petróleo e de gás
natural do mundo. De norte a sul, de leste a oeste, a Europa inteira depende,
para aquecer suas casas, do gás fornecido pelo mamute estatal Gazprom,
uma fonte inesgotável de divisas para o país. Por outro lado,
graças ao alto preço do petróleo, a Rússia conseguiu
saldar suas gigantescas dívidas e vem acumulando fabulosas reservas
de ouro e divisas.
Ao salutar baque psicológico produzido pela ruína do império
soviético, cujo poderio era em boa parte baseado em miragens propagandistícas,
sucede agora, na opinião pública, a euforia pela real importância
que o país vem adquirindo no panorama internacional. Ademais de rica,(1)
a Rússia de Putin estaria recuperando seu antigo poder militar, dispondo
de um arsenal de armas completamente modernizado, a julgar pelas afirmações
do presidente russo.
A Europa inteira
depende, para aquecer suas casas, do gás fornecido pelo mamute
estatal Gazprom |
Mas o fantasma do comunismo vai retornando. Recentemente o
parlamento russo aprovou a restauração no exército dos símbolos
da antiga União Soviética. O hino soviético é cada
vez mais cantado nas repartições públicas.
Tudo isso contribui para fazer renascer o sonho da grandeza imperial, com
uma nova Rússia que pretende ocupar lugar de primeiro plano e exercer
papel decisivo na determinação dos rumos dos acontecimentos mundiais.
O orgulho nacional, lisonjeado por riqueza e poderio crescentes, funciona
como uma espécie de ersatz ou anestésico para a falta de liberdade
de pensamento e de expressão que, essa sim, não foi restabelecida.
Fato é que a imprensa se encontra mais amordaçada do que nunca
com a criação, em março último, de uma superagência
central de controle de todos os meios de comunicação social,
incluindo a internet. Enquanto isso, jornalistas que ousam criticar abertamente
o regime são acossados, perseguidos e assassinados.(2)
Putin, ex-oficial da KGB no comando da Rússia
Putin aproveita
o fator medo–simpatia para pressionar o Ocidente |
Grande impulsionador e artífice da nova Rússia é, sem
dúvida, o atual presidente Putin. Um homem que, no dizer de Vladmir
Feodorovski, sabe falar à alma russa que tem sede de grandeza. Um líder
que vai tirando seu país da pretensa humilhação e rebaixamento
em que se encontrava, colocando-o em alto pedestal. Mas, ao mesmo tempo, um
homem igualmente enigmático, misterioso, impenetrável. Talvez
se lhe possa aplicar o famoso dito de Churchill a respeito da Rússia: “Um
segredo envolto num mistério dentro de um enigma”.
Ex-oficial da KGB, com sua fisionomia pétrea, lutador de karatê na
juventude, e durante anos espião na Alemanha Oriental, Putin está à testa
de um aparato baseado em boa parte nos mecanismos de poder e de influência
da antiga KGB.(3) E dispõe também de muito dinheiro. A Gazprom,
estatal do gás e uma das maiores companhias do mundo, vem sendo acusada
de enriquecer apaniguados do Kremlin. E possivelmente entrará no mesmo
esquema a Russian Technologies, mega-empresa cujo decreto de fundação
deve ser assinado em breve por Putin, uma fusão de três empresas:
Rosoboronexport, que monopoliza a exportação de armas; Avtovaz,
maior fábrica de carros do país; VSMPO-Avisma, maior produtor
de titânio do mundo; além de outras de menor porte.(4)
O fator medo e o fator simpatia
O comunismo
começa de novo a mostrar suas garras nas ruas de Moscou |
Poderoso, respaldado dentro de seu país e não precisando prestar
contas a ninguém,(5) Putin pode agora, na esfera internacional, manejar
como bem entende o binômio medo-simpatia como meio de pressão.
E o faz de modo perfeito. No mês passado, deu provas de sua maestria
explorando esses dois fatores.
O fator medo: Ameaçando instalar mísseis nucleares apontados
contra objetivos na Europa ocidental, como retaliação ao plano
dos EUA de construir na República Tcheca e na Polônia um escudo
antimíssil.(6) Isso fez reviver o clima, praticamente desaparecido,
da guerra fria. Aludiu ademais ao fato de que os arsenais da antiga URSS estariam
não apenas intactos, mas também modernizados. Tais declarações,
com indisfarçável tom de ameaça, repercutiram mal, sobretudo
na Europa. Tanto mais que elas se deram pouco depois de a Rússia haver
feito o lançamento-teste de um míssil de múltiplas ogivas,
no fim de maio. Por detrás da máscara de impassibilidade, viu-se
o rictus do ditador implacável.
O fator simpatia: Abafando o impacto desfavorável e diminuindo o tremendo
desapontamento que suas palavras provocaram, Putin agiu em duas frentes. Primeiro,
em entrevista à revista alemã "Der Spiegel", procurou
apresentar-se como vítima, como um conselheiro não escutado por
seus parceiros e como autêntico representante dos princípios democráticos.
Reportando-se ao dito de seu grande amigo, o ex-chanceler socialista alemão
Gerhard Schroeder, que o qualificou de democrata perfeito, Putin diz modestamente
de si mesmo: “É claro que sou um democrata absolutamente verdadeiro.
A tragédia é que estou sozinho. Não existem no mundo outros
democratas deste tipo”. Portanto, um incompreendido cavaleiro da democracia,
o último do gênero sobre a face da Terra...
* * *
Depois, para grande surpresa geral, durante a conferência do G8, realizada
há poucas semanas no balneário de Heiligendamm (Alemanha), apresentou
ao presidente Bush a proposta de a Rússia montar conjuntamente com os
Estados Unidos um escudo antimíssil no Azerbaijão, contra eventuais
ataques de países considerados piratas, como a Coréia do Norte
e o Irã. Tomado de surpresa, Bush declarou que achava a proposta interessante,
e que iria estudá-la cuidadosamente. A surpresa não é só de
Bush. Realmente, por essa ninguém esperava.
A Putin restam oito meses no poder. No pouco tempo de que dispõe, onde
estará ele querendo chegar com suas ameaças apocalípticas
e suas propostas aliciadoras, com seus acessos de faccia feroce e externando
amáveis sorrisos? Quando se resolverá este “segredo envolto
num mistério dentro de um enigma"? O tempo no-lo dirá.
* * *
Alexander
Stralcov-Karwacki |
Entrevista com Alexander Stralcov-Karwacki,
diretor da Associação Cultural Polonica-Lithuanica e presidente
da Liga Monarchica Magni Ducati Lithuaniae, com sede em Minsk, na Bielorússia
Catolicismo — As
recentes declarações
de Putin a respeito do plano dos EUA de instalar um escudo antinuclear
na República Tcheca e na Polônia foram consideradas por
muitos, no Ocidente, como próprias de um clima de guerra fria.
Que grau de importância deve-se atribuir às ameaças
do presidente russo?
Alexander Stralcov — Os destemperos verbais de
Putin mostram apenas o desejo da Rússia de se livrar da vergonhosa
dependência do Ocidente, em concreto dos Estados Unidos. Porém,
já vai longe o tempo em que a Rússia agia como grande
potência mundial. Ela enfrenta hoje em dia sérios problemas
em diversas de suas regiões. Contudo, permanece em condições
de manter em xeque os países vizinhos. Isso acontece não
apenas em virtude de sua política, mas também por causa
da ajuda dos países europeus, totalmente indiferentes à situação
da Polônia e dos Países Bálticos. Em todo o caso,
a recente encenação de força de Putin não
passa de uma fraca cópia das diatribes de Kruschev na ONU.
Catolicismo — Como
o Sr. descreve a situação
política atual de seu país, a Bielorússia? Há perspectivas
de uma abertura próxima do regime de Lukaschenko?
Alexander Stralcov — Nos últimos meses,
a Bielorússia deu alguns passos rumo à independência
econômica face à Rússia. Entretanto, a questão
que se põe é se verdadeiramente Lukaschenko pode tornar-se
independente em relação a Putin. A impressão que
se tem é que Lukaschenko encontra-se entre a Cila da oposição
ocidental e liberal e o Caribde da proteção russa; mais
exatamente, da antiga KGB, com cujo apoio ele tomou o poder em 1994,
e o manteve em 1996, por ocasião da tentativa de impeachment.
Lukaschenko isolou a oposição numa sala clinicamente
limpa, por assim dizer, e se opôs de modo jeitoso à Rússia.
Porém, são limitadas as suas possibilidades de manobras
políticas, e uma eventual abertura para o Ocidente revela-se
bastante improvável.
Catolicismo — Neste ano comemoram-se os 90 anos
das aparições de Nossa Senhora em Fátima, nas
quais Ela pronunciou graves palavras sobre a Rússia. Como foram
recebidas tais palavras da Mãe de Deus em seu país? Os
católicos tiveram conhecimento das admoestações
celestes?
Alexander Stralcov — As aparições
de Fátima são bem conhecidas dos católicos da
Bielorússia. Os sacerdotes informam seus fiéis regularmente
sobre as revelações de Fátima, sem dúvida
alguma as mais importantes revelações marianas dos últimos
séculos da História da Igreja. Existem inúmeras
paróquias que trazem o nome de Nossa Senhora de Fátima.
Por exemplo, a de Schumilina, na diocese de Witebsk, a de Leltschyzy
e Baranawitschy, na diocese de Pinsk. Os fiéis se interessam
profundamente por descrições pormenorizadas das aparições
e novos comentários que aparecem. O problema principal consiste
na falta de uma clara explicação a respeito da terceira
parte do segredo da Mensagem de Fátima. Mas esperamos que, pela
graça de Deus, em breve possamos ter uma resposta para nossas
perplexidades.
|
_______________
Notas:
1. Existem hoje mais de 100.000 russos com fortuna superior a um milhão
de dólares.
2. A Rússia é considerada atualmente o terceiro país
mais perigoso do mundo para o exercício do jornalismo. Nos últimos
tempos foram assassinados 14 jornalistas. O caso mais famoso deu-se no fim
do ano passado, com o assassinato da jornalista Ana Politkoviskaja. Em seu
livro A Rússia de Putin, ela havia denunciado com destemor o aparelho
ditatorial de que se serve o governo russo para dominar e reprimir qualquer
forma de oposição. Tendo sobrevivido a uma tentativa de envenenamento,
foi executada com rajadas de metralhadora no elevador do prédio onde
morava.
3. No livro Romance do Expresso Oriente, Vladmir Feodorovski, antigo diplomata
e jornalista russo, afirma que a KGB voltou ao poder na era Putin. Em entrevista
ao jornal “O Globo”, afirma Feodorovski: “Os serviços
secretos são marcantes na Rússia. O pais é dirigido hoje
como um filme de James Bond. Há 20 pessoas que ratearam a Rússia
entre si, dirigem o petróleo, o gás, as armas. Meu próximo
livro, previsto para outubro deste ano, deve se intitular O fantasma de Stalin
ou O retorno da KGB. Pretendo falar do serviço secreto, da arte do envenenamento,
da Rússia atual e do retorno de Stalin”.
4. Stanislav Belkovisky, diretor do Instituto Nacional de Estratégia — um “tanque
de pensamento” russo — declara a esse respeito: “Estamos
assistindo a uma redivisão de propriedade. Escapando do controle do
governo, está sendo criado um aparelho de gestão bastante opaco,
cuja principal tarefa consiste em fazer chegar o dinheiro nos escaninhos e
nas mãos corretas”. De acordo com especialistas, a lei torna a
nova empresa especialmente opaca, porque não a obriga a mostrar a maior
parte de suas contas.
5. Em novembro do ano passado morreu em Londres o antigo oficial da KGB, refugiado
na Inglaterra, Alexander Litvinenko. Mediante método típico da
KGB, foi envenenado com polônio 210, material altamente radioativo. Antes
de morrer, denunciou Putin como mandante do crime. A polícia inglesa
descobriu provas que incriminam o agente Alexei Lugovoy e pediu sua extradição.
O governo de Putin negou envolvimento no caso e recusou extraditar o agente.
6. Entrevistado pelo “Corriere della Sera” (de Milão),
o presidente russo assevera: “Se o alcance nuclear americano se espalhar
pelo território europeu, teremos de reposicionar os alvos no continente”.
Outros pontos de atrito atuais entre as duas potências são as
críticas dos EUA à ausência de democracia no interior da
Rússia e o apoio americano à independência de Kosovo em
relação à Sérvia.
Veja:
http://www.catolicismo.com.br
|