Auto-retrato filosófico de Plinio Corrêa de Oliveira


22/07/2004

Plinio Correa de Oliveira

Este modo de ver a amplitude da influência da Igreja na Idade Média, nós o encontramos também no seguinte texto de Paulo VI, referente ao papel do Papado na Itália medieval: “Não esquecemos os séculos durante os quais o Papado viveu sua História [da Itália], defendeu suas fronteiras, guardou seu patrimônio cultural e espiritual, educou as suas gerações para a civilização, para a polidez, para a virtude moral e social, e associou sua consciência romana e seus melhores filhos à própria missão universal [do Papado]”[*].

[*] Alocução ao Presidente da República Italiana de 11 de janeiro de 1964, Insegnamenti di Paolo VI, Tipografia Poliglotta Vaticana, vol. II, p. 69.

Assim, a civilização cristã não é uma utopia. É algo de realizável, e que em determinada época se realizou efetivamente. Algo, enfim, que durou de certo modo mesmo depois da Idade Média, a tal ponto que o Papa São Pio X pôde escrever: “A civilização não mais está para ser inventada, nem a cidade nova para ser construída nas nuvens. Ela existiu, ela existe: é a civilização cristã, é a cidade católica. Trata-se apenas de instaurá-la e restaurá-la sem cessar sobre seus fundamentos naturais e divinos contra os ataques sempre renascentes da utopia malsã, da revolta e da impiedade” [*]. Portanto, a civilização cristã tem largos vestígios ainda vivos em nossos dias.

[*] Carta Apostólica – Notre Charge Apostolique de 25 de agosto de 1910, Acta Apostolicae Sedis , vol. II, p. 612.

As crises nascem, não da mente de algum pensador,  mas das paixões desordenadas,  atiçadas pelo Poder das Trevas

Há quem imagine todas as crises da cultura e da civilização como nascidas necessariamente de algum pensador, de cuja mente possante partiria sempre a centelha esclarecedora — ou destruidora — que se comunicaria primeiramente aos ambientes de alta cultura e ganharia depois todo o corpo social. É claro que, por vezes, as crises nasceram desse modo. Mas a História não confirma que assim tenham nascido todas elas. E em particular não nasceu assim a crise que pôs em declínio a Idade Média e suscitou o Humanismo, a Renascença e a Pseudo-Reforma protestante.

Pelo próprio fato de pedir ao homem uma austeridade de costumes penosa para a natureza humana decaída, a influência da Igreja sobre cada alma, cada povo, cada cultura e cada civilização está continuamente ameaçada. As paixões desordenadas, atiçadas pela ação preternatural do Poder das Trevas, solicitam continuamente homens e povos para o mal. A debilidade da inteligência humana é explorável por essas tendências. O homem facilmente engendra sofismas para justificar as más ações que deseja praticar ou já praticou, os maus costumes que contraiu ou está contraindo. Disse-o Paul Bourget: “Cumpre viver como se pensa, sob pena de, mais cedo ou mais tarde, acabar por pensar como se viveu” [*].

[*] Le Démon du Midi , Plon, Paris, 1914, vol. II, p. 375.

Orgulho e sensualidade: importância culminante no processo de revolta contra a Igreja

Especialmente duas paixões podem suscitar a revolta do homem contra a Moral e contra a Fé cristãs: o orgulho e a sensualidade.

O orgulho leva-o a rejeitar qualquer superioridade existente em outrem, e gera nele um apetite de preeminência e de mando que facilmente chega ao paroxismo. Pois o paroxismo é o ponto final para o qual tendem todas as desordens. Em seu estado paroxístico, o orgulho assume coloridos metafísicos: já não se contenta em sacudir em concreto esta ou aquela superioridade, esta ou aquela estrutura hierárquica, mas deseja a abolição de toda e qualquer superioridade, em qualquer campo em que exista. A igualdade onímoda e completa se lhe afigura então a única situação suportável e, por isso mesmo, a suprema regra da justiça. Assim, o orgulho acaba por engendrar uma moral própria. E no âmago dessa moral orgulhosa está um princípio metafísico: a ordem do ser postula a igualdade, e tudo quanto é desigual é ontologicamente mau.

A igualdade absoluta é, para o que chamaríamos de orgulhoso integral , o valor supremo ao qual tudo tem de se conformar.

A luxúria é outra paixão desordenada, de importância culminante no processo de revolta contra a Igreja. De si, ela induz ao desbragamento, e convida assim o homem a calcar aos pés toda lei, a rejeitar como insuportável todo freio. Seus efeitos se somam aos do orgulho, para suscitar na mente humana toda espécie de sofismas capazes de minar no seu âmago o próprio princípio de autoridade.

Por isso, a tendência que o orgulho e a sensualidade despertam orienta-se para a abolição de toda desigualdade, de toda autoridade e de toda hierarquia.

Processos opostos: a Fé convida ao amor à hierarquia;  a corrupção, ao igualitarismo anárquico

Claro está que essas paixões desordenadas, ainda quando o homem capitula diante delas, podem encontrar em uma alma — ou no espírito de um povo — contrapesos representados por convicções, tradições, etc.

Nesse caso, a alma — ou a mentalidade do povo — fica dividida em dois pólos opostos: de um lado a Fé, que convida à austeridade, à humildade, ao amor de todas as hierarquias legítimas; e de outro lado a corrupção, que convida ao igualitarismo completo, an-árquico no sentido etimológico da palavra. Como pouco adiante se verá, a corrupção acaba por induzir à dúvida religiosa e à negação completa da Fé.

O mais das vezes, a opção entre esses pólos não se faz de um momento para o outro, mas aos poucos. Por meio de sucessivos atos de amor à verdade e ao bem, uma pessoa ou uma nação pode ir progredindo gradualmente na virtude, até se converter por completo. Foi o que sucedeu com o Império Romano sob a influência das comunidades cristãs, das preces dos fiéis nas catacumbas e nos ermos, do heroísmo que revelavam na arena e dos exemplos de virtude que davam na vida cotidiana. É um processo de ascensão.

O processo também pode ser de decadência. Ao embate das paixões desordenadas, as boas convicções vão sendo abaladas, as boas tradições vão perdendo sua seiva, os bons costumes vão sendo substituídos por costumes picantes , que degeneram para o francamente censurável, e chegam por fim ao escandaloso.

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